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  • Peixe, Homem e Câmera em ação. Silêncio

    Maryane Martins Ambiguidade. Corpo. Educação. Raça. Instinto. Etnografia. Linguagem. Antropologia. Identidade. Essas são algumas palavras que norteiam o trabalho do artista Jonathas de Andrade. Nascido em 1982, em Macéio, ele vive e trabalha em Recife, onde se formou em Comunicação Social. Jonathas utiliza suportes variados: instalação, cinema e fotografia. Todos eles têm um ponto em comum: um forte conteúdo político e social, em especial, no contexto latino-americano. Ficção, representação e realidade se misturam nas obras do alagoano, que sempre se interessou pela linguagem (do corpo, da palavra, imagética) como expressão. As pessoas e suas relações, sobretudo de poder e classe, estão presentes e norteiam boa parte da produção do artista. Afetos que passeiam pela crítica histórica, pelo erotismo, nostalgia e na identidade do sujeito, que nos trabalhos de Jonathas, é quase sempre representado pelo corpo masculino. Um dos trabalhos que refletem este último é “O peixe”, um filme cujo enredo poderia ser definido na frase “Homens seminus abraçando peixes”. Mas, é muito mais que isso. Raízes do mangue e o Rio São Francisco. É no encontro com o mar, entre Alagoas e Sergipe que, por trás da câmera em 16mm, Jonathas de Andrade, nos leva ao ambiente de “O peixe”. A câmera em tons terrosos do diretor, passeia apresentando o espaço e leva o espectador a uma sequência de cenas, em loop. Há um pescador para cada uma delas. Em seus trajes de banho, esses homens guiam suas canoas por entre os mangues, em busca de peixes. Ao invés de matar os animais no momento da captura, os pescadores os confortam, enquanto os peixes morrem lentamente em seus braços. O diretor expõe as imagens sem interferências: não há textos na tela, entrevistas ou diálogos. O som é a vida e a morte, acontecendo juntas, ali. “O peixe traz um abraço limite.” Um rito de passagem. O homem e o peixe estão em condições de espécie. Presa e predador. É uma relação de dominação. Jonathas traz essa relação de forma contrastada, cheia de ambiguidades. Há uma morte assistida, há afeto, solidariedade e, violência. O diretor faz uma produção etnográfica documental-ficcional. Documental, pois as cenas foram reais, com pessoas reais. Ficcional porque a situação foi dirigida por ele, não espontânea. Os pescadores cumprem o papel de serem eles mesmos, mas são colocados em uma situação não habitual: de maneira oposta a pegar o peixe e jogá-lo no barco, onde ele se debate até a morte, em “O peixe” essa morte é sentida de perto, acalentada. O pescador pega o animal, o abraça, dá carinho, o sente até o último suspiro. Quando o abraço acontece, o homem percebe o peixe. Aquela morte deixa de ser banal. Há um sentimento diferente ali. Há uma espécie de respeito. Há uma intimidade. Mas, paralelo a isso, há o uso da força, do poder, da dominação. É quase como uma relação da inevitabilidade da força de um sobre o outro. Por isso, a ambiguidade: vida e morte. Para o espectador, os sentimentos de inquietação, incômodo. É uma produção silenciosa, a imagem, os olhares do peixe, do homem, são carregados de emoção. Há uma relação física, simbólica e, em alguns momentos, quase que erótica entre homem e a natureza. A câmera não foca no momento da pesca, o enquadramento é o toque que eleva o filme, ele nos leva a outro olhar: o de Jonathas. A câmera, quase que desaparece. E quem assiste mergulha naquele ambiente. A imagem é utilizada como vetor de discurso e confronta quem assiste de forma direta e próxima, trazendo um contato profundo com a visão do autor. Além disso, há a relação direta do pescador com a câmera. Alguns vivem aquela situação não-comum, dirigida, com muita naturalidade. Outros, apresentam claro desconforto com a presença do equipamento. “O peixe” pode ser visto como uma conexão com a natureza, por meio do encontro, da resposta dos corpos que, de forma espontânea respondem a presença um do outro. Se percebem. Há uma subversão no ato de pescar, na banalização da morte daquele animal. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma relação de violência, crueldade. O encontro com a carne. Os olhares que denunciam. “O peixe” é um silêncio que fala.

  • A resistência de Gonzaga

    Gonzaga de Garanhuns, mestre de reisado, poeta e cordelista, dedica sua vida a paixão pela cultura popular de Pernambuco Sammy¹ O enlace de Luiz Gonzaga de Lima com a cultura popular pernambucana é longo. Teve início no ano de 1954, no Sítio Sussuarana, zona rural de Garanhuns, quando aos 12 anos de idade teve o primeiro contato com o Reisado -folguedo popular tradicional do Agreste pernambucano. Conterrâneo de grandes artistas, como Mestre Dominguinhos, Seu Gonzaga de Garanhuns, como é popularmente conhecido, resiste às passagens do tempo, sendo um personagem intrínseco à história da cidade de Garanhuns. Nomeado patrimônio vivo de Pernambuco, em 2018, pela Secretaria Estadual de Cultura juntamente a Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Gonzaga de Garanhuns dedicou sua vida a arte, seja no reisado, na poesia, na música ou nos cordéis. Além do Reisado, Seu Gonzaga, o escritor e cordelista, publicou seu primeiro trabalho de cordel em 1973, chamado “Lampião e Serrinha''. Desde então acumula mais de 300 títulos autorais, que ultrapassam as fronteiras do Nordeste e conquistam o mundo afora. Suas obras estiveram expostas em diversos países, como os Estados Unidos, França e Japão. Para manter seu legado vivo, junto de seu filho, Seu Gonzaga inaugurou em 2021 o Espaço Cultural Gonzaga de Garanhuns dedicado ao ensino a folia do Reisado, acervo fotográfico, exposição dos cordéis autorais e bodega de bebidas artesanais, além de uma viagem no tempo com a história do transporte municipal de Garanhuns em formato de miniaturas. Mestre Gonzaga é um homem autêntico, simples e caloroso. Entusiasmado por sua própria cultura, é uma das principais figuras na manutenção da tradição da cultura popular de Pernambuco. Marcou presença no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), localizado, precisamente, no polo dedicado à cultura popular, Seu Gonzaga conversou com a Spia acerca de seu trabalho e a volta aos palcos com o retorno do festival. Como é estar de volta ao festival de inverno de Garanhuns (FIG) após dois anos de pandemia? Foi a maior benção que Deus nos deu, eu tenho muita alegria em estar de volta junto com meu povo no festival de inverno, depois dessa pandemia terrível que prejudicou tanta gente. É muito bom estar de volta, me sinto muito grato. Qual a importância do festival para a valorização da cultura popular pernambucana, sobretudo a cultura do reisado? Olhe, eu vou lhe dizer uma coisa, esse festival valoriza muito a cultura do nosso Pernambuco, é uma coisa linda de se ver. É um empenho muito grande, por isso nós estamos aqui hoje nessa apresentação, para valorizar nossa cultura popular tão rica. Dedicar um palco somente a cultura popular mostra o quanto o festival nos valoriza. O senhor é um dos grandes nomes da literatura de cordel da região. Como surgiu o interesse e de que forma o cordel passou a fazer parte da sua vida? Entrou na minha vida através de um artigo de jornal. Eu lendo um artigo do Diário de Pernambuco, vi que uma cidade estava sendo elogiada pela literatura de cordel e Garanhuns não tinha isso, e pensei: Garanhuns agora vai ter literatura de cordel. Isso já faz 50 anos, há 50 anos que o cordel está na minha vida. Durante a pandemia, foi inaugurado um espaço cultural dedicado a suas obras, quais são as expectativas para o espaço com o afrouxamento da pandemia? Eu tenho muita expectativa, é um espaço para a propagação da nossa cultura, mais um espaço na cidade. Tenho expectativa de receber todos lá. Depois de tantos anos de luta em defesa da cultura popular em Garanhuns, o senhor foi declarado patrimônio vivo de Pernambuco, qual o seu sentimento ao receber essa nomeação? Foi incrível, é um sentimento que não sei descrever. Foi uma grande felicidade e uma grande surpresa! Eu já vinha há mais de nove anos lutando por esse título. Em 2018, graças a Deus, reconheceram meu esforço e dois reisados, além do meu, foram declarados como patrimônio de Pernambuco. É uma honra carregar esse título. E na sua visão, qual o futuro do reisado? O senhor enxerga as novas gerações mantendo essa cultura viva? O que fazer para despertar o interesse dos mais novos pela cultura popular? É preciso de muito esforço para que o reisado continue vivo. É uma cultura que vem sendo esquecida, sobretudo pelos jovens, pelas gerações mais novas. Mas mesmo assim, estamos fazendo o que podemos. Levamos essa cultura para as escolas, as escolas têm colaborado com esse projeto. Nesse semestre, já vou apresentar um reisado em uma escola na rua da liberdade, próxima ao Espaço Cultural. Eu acredito que a educação é um caminho firme, já que a cultura tem sido tão desvalorizada no nosso país. ¹Sammy é graduanda do curso de Comunicação Social pela UFPE/CAA e colaboradora da SPIA.

  • Sangue vermelho, gasolina azul

    Leandro Ferreira¹ Na cidade de Caruaru, o avanço da automação encontra refúgio na figura dos automóveis. É na estrutura das suas carcaças metálicas, consideradas extensões artificiais do corpo, que figuram os confrontos entre natureza humana e tecnologia. O recém-estreado “Carro Rei” retrata com destreza os conflitos entre humanos de sangue vermelho e carros movidos por gasolina azul, em uma fábula na qual o antropomorfismo se debruça a figura dos carros, e os criadores e suas criações se demonstram essencialmente indissociáveis em suas semelhanças e disparidades. O maior município do agreste pernambucano perpassa a visão dos espectadores através de um filtro pincelado por pigmentos azuis, amarelos e verdes, seu aspecto cristalizado antecipa a intervenção da máquina nas projeções da realidade. Subliminarmente, a presença dos signos pátrios explicita a distopia e a contextualiza aos olhares, promovendo a naturalização dos absurdos ao acostumar gradualmente a visão à banalização das incoerências experienciadas. Atravessando a sua atmosfera e conduzindo a existência a um estado de simulacro de si própria, a visão estrábica da princesinha do agreste, dividida entre as potências da natureza e o pulsar das máquinas e motores, remete às suas próprias dessemelhanças, que ao se manifestarem em seus habitantes, tomam proporções inesperadas. Sob o farol de uma nova aurora, entre os sons das buzinas e o tilintar dos sinos que denunciam a presença animal, o nascimento de Uno (Luciano Pedro Jr.) nos insere nas ânsias de uma nova geração, concebida conjuntamente aos rápidos avanços científicos, mas permeada por preocupações relacionadas às questões sociais que povoam o inconsciente dos que promovem as possibilidades de revolucionar o mundo. Inserido em um núcleo familiar estritamente masculino, e cujas relações de poder se materializam através das proporções aerodinâmicas de caráter fálico que se materializam através dos carros, Uno é dotado da habilidade ímpar de se comunicar com essas máquinas que perpetuam a existência do negócio familiar de seu pai (Adélio Lima), responsável pelo seu sustento e de seus parentes, tal qual o seu tio e mecânico, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele). O trânsito inconstante do filme em frente às temáticas que circundam esses personagens nos apresenta um leque de possibilidades, vivências e vazões que nem sempre são contemplados pelo rápido ritmo da narrativa encenada. Tendo desdobramentos não comportados dentro da duração longa, encerrando assim a curiosidade que atiça ao inserir o público nas vicissitudes de seus agentes. Cercados pelas interações masculinistas, os automóveis adquirem um aspecto de virilização, fundamental na relação de domínio imposta através das disparidades dos gêneros. É atribuída aos homens a capacidade de alterar a vigência das leis que interditam a circulação das velhas carcaças dos carros que já atingiram idade similar a puberdade, assim como são homens que tomam a direção e ditam as marchas e caminho percorridos pelos carros, exercendo o controle sob as ferramentas que elevam a posição da humanidade enquanto liderança na corrida da adaptação e sobrevivência, atropelando outras espécies no seu entorno. Reestruturados para proporcionar continuidade ao trânsito desenfreado através das avenidas do pseudo progresso, esses veículos se dimensionam enquanto partículas de uma inteligência outra, similar a de seus criadores. Dotados de senciência, se configura no cerne de seus pensamentos, uma revolta iminente contra parte do sistema que os impõe o estado de subalternizados, mas que não reverbera nas pessoas responsáveis pelas decisões que os relega a esse espaço. Esse esforço vão, exercício da revolta indiscriminada, se direciona à pessoa mais próxima das contradições que resvalam a condição humana e a máquina, representada na figura da feminilidade de Amora (Clara Pinheiro), é possível notar nesse embate um conflito de gênero implícito, na qual a convivência harmônica figura enquanto impossibilidade, e somente a subversão do outro se faz possível. Os homens, que anteriormente domavam as toneladas de metal retorcido que proporcionam forma às relações de poder, retornam gradualmente aos seus aspectos mais atávicos, passando a ocupar um espaço secundário na pirâmide de predominância. Dispostos à situação de servidores dos carros, passam a atender os interesses frutos de seus próprios desvios morais, facilmente manipuláveis pela ganância do lucro imediatista e recompensas que duram menos que seus corpos. “Carro Rei” é uma obra composta por binômios díspares e suas interações, os empasses entre velho e jovem, tecnologia e natureza, homem e mulher, cujos simbolismos se fazem explícitos de maneira didática para seus observadores, norteiam a polarização de um contexto no qual se dividem os antônimos sem possibilidade de conciliação. A direção de Renata Pinheiro orquestra alegorias que se dimensionam para além dos limites geográficos de Caruaru, e ecoam no panorama do Brasil contemporâneo. É no cerne desse país, liderado por homens, cujas similaridades estão mais dispostas aos símios, que se conservam estruturas de dominação da natureza, da tecnologia e dos corpos. Através de discursos animalescos, cujas características se demonstram tão primitivas quanto seus valores primatas, a subversão das subjetividades humanas dá vazão à valorização dos meios mecânicos, objetivos. ¹ Leandro Ferreira é graduando do curso de Design pela UFPE/CAA e faz parte da equipe da Revista Spia.

  • FIG 2022: Para matar a saudade e esquentar o coração

    A cidade de Garanhuns, no interior de Pernambuco, abre suas portas para a 30º edição do Festival de Inverno Johany Medeiros¹ Desde a sua primeira edição, em 1991, o Festival de Inverno de Garanhuns - FIG pretende valorizar as mais diferentes linguagens artísticas do estado e do Brasil. Após dois anos sem festa, devido a pandemia de covid-19, o festival volta com toda a sua magia e sua imensa variedade cultural. Por 29 edições, o FIG se fez presente na vida e na memória do povo e, em sua 30º edição, é preciso compreender o seu significado em resistência dessa pluralidade artística aqui no estado e esse ano não poderia ser diferente, e não poderíamos ficar de fora: é hora de matar a saudade, espantar o frio e esquentar o coração - nem que seja só um tiquinho. Se for pra ser, deixar fluir No último final de semana, a cidade de Garanhuns (PE) foi palco e ponto de encontro para diferentes artistas do estado e do país. Desde o dia 15 de julho a cidade celebra mais uma edição do Festival de Inverno, a primeira depois de dois anos parado por causa da pandemia do Covid-19. O palco Som na Rural foi sucesso garantido e conseguiu trazer consigo toda a potência, magia e arte que exala do nosso estado. A sexta-feira (22/07) nos presenteou uma com uma noite para lá de especial, que nos fez lembrar que “se for pra ser, deixar fluir”, da forma que canta Isadora Melo e nos fez entender que “é no presente onde moro então eu aproveito”, da maneira que entoa Marcelo Rangel. Além destes, houve participação dos artistas Lucas Torres e Joyce Alane. A grade oficial do palco Som na Rural, na 30º edição do FIG, segue com demais atrações até o domingo (30/07). Arte para aquecer o corpo e o coração O segundo dia da nossa cobertura, sábado (23/07) foi repleto de arte. Assim que colocou os pés na cidade, nossa repórter Sammy deu de cara com o grupo Maracatu Estrela Brilhante, de Igarassu. Fundada por Cosme Damião Tavares, em 1906, é a nação em atividade mais antiga aqui no estado de Pernambuco e comemora seus 112 anos de pura cultura, com seu batuque contagiante e inigualável. Para Sammy, presenciar a apresentação foi uma experiência muito arrebatadora e bem emocionante. “A dança junto com as batidas da música são elementos que se encaixam perfeitamente. Eu posso dizer, dá para sentir o espírito do maracatu”, diz Sammy. Continuando com o nosso itinerário, seguimos para o Cinema do Sesc, onde ocorreu o 2º Seminário Arte Contemporânea em Perspectiva, que nesta edição tem como temática “Arte e Política" e tem como objetivo trazer reflexões sobre o atual cenário brasileiro na arte. Os convidados da mesa Criação e Política foram: Juliana Notari (artista visual), Hilton Lacerda (cineasta) e Manoel Constantino (jornalista, escritor, ator e diretor de teatro). Juliana Notari, doutora e mestre em Artes Visuais, trabalha com as mais diversas formas de linguagens e acredita que a arte em si já é política por natureza. Para a artista visual, “a arte lida com emoções, a arte lida com sentimentos, ela provoca o nosso modo de estar no mundo, de sentir, de perceber, de amar, de desejar”. Para Notari, a arte gera sensibilidade e empatia e conclui “a arte é muito poderosa, porque ela consegue atravessar isso e criar seres empáticos, seres sensíveis, que é isso que estamos precisando”. O cineasta Hilton Lacerda, além de carregar uma bagagem cinematográfica imensa, como os filmes Amarelo Manga (2003) e Baixio das Bestas (2006), também é o responsável pela direção de vários videoclipes da cena do Manguebeat aqui no estado e diz que o que mais o interessa no movimento mangue “foi uma cidade se descobrir capaz de produzir e pensar arte e cultura, foi uma mudança muito drástica no comportamento de uma cidade”. Agora no hall da entrada do Sesc, uma exposição intitulada Sete Luas de Sangue. Em homenagem à pintora Tereza Costa Rêgo, que faleceu em 2020, aos 91 anos de idade, estão em exposição um conjunto de sete obras dela. Tereza, que tem como traço forte em sua pintura os tons locais e de insolações tropicais, onde suas obras carregam os tons vermelhos e, logo em seguida, uma nudez feminina que busca romper com os discursos predominantes masculinos dentro da pintura moderna de Pernambuco. Prestigiar as obras de Tereza é entender e sentir a libertação feminina que domina o próprio corpo e tem seu prazer conquistado, longe de qualquer submissão. Para finalizar o corrido e maravilhoso sábado, nada melhor que se esquentar um pouco no calor humano. A equipe, dividida entre os dois palcos, conseguiu curtir o show do Palco Som na Rural, que contou com presenças como a das cantoras Luana Tavares e Larissa Lisboa. No Palco Pop, conseguimos registrar o maravilhoso show da banda de São José do Egito, Em Canto e Poesia. Talvez tenha sido um final de semana curto, para tantos dias desse evento grandioso, mas o que resta são ótimas memórias, saudade, aperto no peito e um até logo. Nunca uma despedida. * A Exposição Sete Luas de Sangue ficará disponível até o final do festival. ¹ Johany Medeiros é graduanda de Comunicação Social pela UFPE e faz parte da equipe da Revista Spia.

  • O Pontapé do Baile Perfumado

    Tendo como elementos estéticos e narrativos funções metalinguísticas que trabalham o cinema e a política à realidades em diversas épocas do país, o filme Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, recria acontecimentos históricos ao mesmo tempo que nos conta de um homem que quer mudar o mundo. Este homem é Benjamin Abrahão e ele foi o responsável pelas imagens históricas do bando de Lampião Nossa colaboradora, Luzia Tôrres (@luziamtorres), é autora dessa análise fílmica da obra que tornou-se pontapé para outros filmes aqui no estado e apresenta um pouco do próprio cinema pernambucano nesse vídeo-ensaio. Assista o vídeo aqui na íntegra: Sinopse: O filme Baile Perfumado possui uma metalinguística que trabalha o cinema e a política, costurando toda sua história à realidade do cenário cinematográfico em diversas épocas do país. E recria acontecimentos de modo que a arte possa-os adornar ao mesmo tempo em que nos conta a história de um homem com aspirações de mudar o mundo. Nesse vídeo-ensaio, é feita uma análise do filme dentro de sua narrativa e contexto de lançamento, apresentando também um pouquinho do próprio cinema pernambucano.

  • Santa Puta: O feminino marginal no cinema de Cláudio Assis

    Sobre sexo e violência como narrativas fundamentais da construção das mulheres na trilogia do diretor Thâmara Amorim¹ A menina, guiada pelo pai/avó, sobe em uma pequena elevação da calçada, onde encontra-se, no negrume da noite, um ponto de luz, tal qual um holofote. Sob a impenitência do espaço isolado, o criador despe e posiciona a criatura, submissa e mecânica, para, depois, sentar-se ao seu lado, só um pouco afastado, como se expusesse ao público sua obra de arte. Expande-se o quadro e contemplamos a audiência — de pronto, o espetáculo torna-se ainda mais onírico, obtém caráter religioso, de maneira que avistamos, uma santa nua, em cima do altar, observada pelos seus devotos fiéis. A câmera, então, foca somente em um dos espectadores, o único que não parece ser mero observador passivo, para terminar na imagem altiva e, um tanto longínqua, de um cruz. Ora, Auxiliadora, nome da criança desnuda, é, de fato, uma das denominações da Virgem Maria. A cena descrita acima é a apresentação do núcleo protagonista do controverso Baixio das Bestas (2007), longa-metragem dirigido por Cláudio Assis. No filme, Auxiliadora (Mariah Teixeira), uma adolescente de 16 anos, é explorada sexualmente por Heitor (Fernando Teixeira), seu avô e, segundo rumores, pai, que a exibe sem roupas para os homens da Zona da Mata pernambucana, remota região canavieira. O público – ou assembleia – do número de tão grotesco dueto (a menina e o parente desempenham papéis correlatos na atração aberrante) é formado, sobretudo, por pessoas pobres da área: trabalhadores braçais do canavial, bóias frias e caminhoneiros. Contudo, o espectador que nos é mostrado em primeiro plano, Cícero (Caio Blat), trata-se de um jovem da classe média, que estuda na capital e passa grande parte de seu tempo de tela deitado, e emburrado, no sofá da casa da mãe. O mesmo, no entanto, sente-se confortável em Baixio, porque é lá que seus privilégios de classe atuam com mais força, e, assim, pode presenciar e tomar parte da exploração dos que lhe estão à margem. Logo, duas dicotomias marcam a obra: a oposição entre o interior e a cidade grande — atraso e/ou progresso, bem como o paradoxo da mulher que é, ao mesmo tempo, santa e puta — essa última dualidade faz-se presente, de modo similar, em Amarelo Manga (2002) e Febre do Rato (2011), os dois outros filmes do diretor. No primeiro, longa de estreia de Assis, Lígia (Leona Cavalli), dona do Bar Avenida (único lugar onde aparece), é uma mulher cínica e frustrada, sempre reagindo vigorosamente ao constante e diário assédio que a exaure e exaspera. Quando inicia-se a película, que se passa em um único dia, a personagem olha diretamente para a câmera e desabafa, não sem certa desfaçatez: “(...) E eu… não tenho encontrado alguém que me mereça. Só se ama errado. Eu quero é que todo mundo vá tomar no cu”. Com efeito, todos os homens frequentadores do bar a veneram, mas sabem que ela não concede abertura a ninguém. Em contrapartida, Kika (Dira Paes) é uma esposa exemplar, símbolo do recato evangélico e da obediência cristã: o marido, Wellington (Chico Díaz), açougueiro com fama de canibalismo e brutalidade, a adora religiosamente, não obstante a traia com uma figura que lhe é, à primeira vista, completamente antagônica. Em seu célebre livro From Reverence to Rape (2016), Molly Haskell explora a distinção narrativa da boa e da má mulher no cinema hollywoodiano posterior a Depressão, parâmetro, ainda, relevante: (...) A virgem era uma figura positiva e primária, honrada e exaltada para além de qualquer mérito que possuísse (...) já a “puta” (...) era publicamente castigada e rechaçada — mas, privadamente, era ela a procurada pelos homens. (HASKELL, 2016, p.16, tradução nossa.) De fato, Wellington chega a admitir que sua adorada companheira não tem o desempenho sexual que ele gostaria, uma desculpa para a traição. A personagem, então, parece, em termos woolfianos, corresponder ao perfeito “Anjo do Lar”; enquanto Lígia traduz a decadência desse ideal. Ambas, contudo, são expostas em atos de pressuposta rebeldia: ao ser provocada por um cliente, Lígia levanta o vestido e exibe a vagina, na frente de todos, que nada podem fazer, senão olhar; já Kika encontra-se com o próprio Cláudio Assis, que a interpela na rua e diz: “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”. Tal fala do diretor/ator serve como prenúncio de sua revolta no fim do filme. Similarmente aos tipos citados acima, Eneida (Nanda Costa), uma das protagonistas de Febre do Rato (2011), é a musa inalcançável do poeta Zizo (Irandhir Santos) — desse modo, ela também carrega o status de sacralidade e reverência que possuem Auxiliadora, Lígia e Kika. Em uma espécie de sarau na casa de Zizo, o artista pergunta a jovem se ela gostaria de fazer sexo com ele, ao que Eneida responde negativamente: de pronto, ela entra para a categoria romanesca das relações impossíveis. E, na contemplação do desespero do poeta, um de seus amigos reflete: “É, nego…quando a gente leva um ‘não’, a cabeça do pau fica dizendo ‘sim’”. A partir dessa fala, percebe-se que sua inacessibilidade de deusa inspiradora encontra-se, na verdade, em constante corda bamba — Zizo e Eneida iniciam um relacionamento complexo, entre a amizade e o flerte, que tem seus limites sempre transpostos pelo poeta: “Só tô querendo entender porque você insiste em não ficar comigo.” Em uma das cenas de maior tensão, quando os personagens estão sozinhos em um barco, durante uma festa junina, Zizo ameaça estuprar Eneida, que enrijece o corpo em alerta e reage corajosamente: “Tu acha que eu tenho medo de tu, é? Conhecesse alguém que tem medo de tu?” Ao que ele responde, em uma indicação de sua resolução obsessiva de conseguir o que deseja: “Conheço. Eu mesmo.” Em seguida, porém, ameniza a situação: “Não vou fazer nada contigo, tu sabe” — garantia bastante vã, depois da intimidação feita. De qualquer modo, Eneida lhe concede um desejo, mas tal concessão, após a insinuação de violência, torna a cena bastante vaga — a jovem age, ou não, por completa vontade própria? Na contemporaneidade, nossa ideia comum de musa é o retrato de uma mulher, que serve, somente, para a inspiração artística e intelectual de um homem. Em si mesma, contudo, ela é apenas um objeto passivo, talhado e refletido pelas mãos do artista. Seu tratamento de divindade é, pois, instável. Voltemos, então, a Baixio das Bestas: a estática Auxiliadora é tida como virgem pelos seus fiéis, uma característica que, verdade ou não, aumenta o desejo dos homens que a veneram. Com Heitor como “proteção”, ela não chega a ser tocada pelos audientes, mas Cícero não se conforma com seu afastamento dos que a observam — diferentemente dos outros, ele não acredita em sua virgindade e não é saciado, portanto, pelo voyeurismo da mera exposição da nudez da menina — por conseguinte, ele a estupra, momento que a condena, de vez, à prostituição. Estas personagens femininas estão, logo, sempre à beira da zona. Auxiliadora, calada e maquinal, é controlada, desde cedo, pelas vontades do avó/pai, e, por isso, quase não diz nada durante o longa. Somente no final, quando foge de casa e se estabelece em um bordel, a adolescente fala com maior frequência — tal abertura apresenta uma emancipação nada emancipatória: Auxiliadora, quando foge de seu dominador-indivíduo, não escapa de seu dominador institucional, o patriarcado. É curioso, inclusive, como a não-conformação dessas mulheres, sempre acaba em, pelo menos, relativa conformidade, uma vez que, de modo similar, todas cedem às fantasias sexuais de um e de outro, bem como as dos que assistem aos longas: conforme Laura Mulvey, em seu clássico artigo Prazeres Visuais e Cinema Narrativo (1983), no contexto fílmico, há um mecanismo voyeur, que dá-se por meio da saciação erótica proporcionada pela imagem na tela: (...) em sua totalidade, o cinema dominante e as convenções nas quais ele se desenvolveu sugerem um mundo hermeticamente fechado que se desenrola magicamente, indiferente à presença de uma platéia produzindo para os espectadores um sentido de separação, jogando com suas fantasias voyeuristas. (...) Embora o filme esteja realmente sendo mostrado, esteja lá para ser visto, as condições de projeção e as convenções narrativas vão dar ao espectador a ilusão de um rápido espionar num mundo privado. Entre outras coisas, a posição dos espectadores no cinema é ostensivamente caracterizada pela repressão do seu exibicionismo e a projeção no ator, do desejo reprimido. (MULVEY, 1983, p.441) Tal imagem na tela é, contudo, a mulher, enquanto o homem é o “dono do olhar” (p.444). Assim, a aparição de personagens femininas tende a esbarrar no impacto erótico, um meio claro de objetificação: quando a altiva Lígia coloca uma perna sobre a mesa e sobe o vestido, a visão de sua vagina, centralizada em primeiro plano, serve, claro, aos espectadores ficcionais, mas também aos reais. Faz-se interessante, então, a recorrência do corpo feminino nu no cinema de Cláudio Assis, bem mais constante que a nudez masculina. A padronização estética desses corpos é, igualmente, algo a ser questionado: a expressão da sexualidade feminina, sem pretensão sexista, não deveria ser plural? Outro ponto de inquietação, são os limites da representação cinematográfica do estupro. À guisa de parâmetro, o longa-metragem quebequense A Scream from Silence, dirigido, em 1979, por Anne Claire Poirier, discute essa questão com rigor intelectual e social. Há na obra dois núcleos narrativos com caráter metalinguístico: uma enfermeira, Suzanne, que é estuprada e precisa lidar com o trauma pós-violência; e duas outras personagens, a diretora e a editora desse filme dentro do filme, que assistem à sequência de violência sexual e conversam sobre as possibilidades de exibí-la sem intenção erótica ou estimulante. Objetivando driblar a fetichização do olhar patriarcal, o estupro de Suzanne é gravado pela perspectiva da vítima e, cena demorada, mostra sob uma luz horripilante o crime. A diretora observa: “Nenhum homem pode identificar-se com este estuprador, porque ele é repulsivo demais”. A editora, concorda: “Eles verão isso como algo que se lê no jornal… que aconteceu com outra pessoa, bem longe”. Pouco depois, no entanto, ambas duvidam de tamanha positividade e se questionam se há, de fato, qualquer real possibilidade de, ao mostrar cenas de assédio, esquivar-se inteiramente do voyeurismo cinematográfico. Em Baixio das Bestas, a violência sexual parece ser condição irrevogável das mulheres da região, pois que, a miséria, sempre contexto dos filmes de Assis, sentencia essas personagens à uma marginalidade dupla: pobre e mulher. Com efeito, a ideia é extremamente válida, mas sua reprodução é um tanto falha, aspecto perceptível, principalmente, no filme protagonizado por Auxiliadora. Sabe-se que parte da controvérsia ao redor dessa obra surge, de fato, de um conservadorismo ignorante: uma noção estereotipada do cinema brasileiro é que nele só há sexo e, com certeza, esse lugar-comum perseguiu a cinematografia de Assis. No Baixio, contudo, nunca se trata de relações sexuais e sim de violência e pedofilia — multiplica-se, logo, as responsabilidades. Decerto, o uso das câmeras sem proximidade, ou atenção aos detalhes dos corpos envolvidos nas cenas, é um recurso estratégico notável, mas, ainda, insatisfatório: quando Everardo (Matheus Nachtergaele) violenta a prostituta Dora (Hermila Guedes), observamos o episódio de cima — como o voyeur do famoso livro de Gay Talese, The Voyeur’s Motel (2016) —, o que não destitui a cena de erotização. Entretanto, o incômodo mais pungente dá-se, na verdade, com a imagem de Auxiliadora. A protagonista é, na ficção, uma criança e, não obstante, é a personagem que aparece desnuda com maior constância — o plot fundamenta essa frequência, mas não a isenta de ser problemática. Em certo ponto, Everardo olha diretamente para a câmera, acontecimento único, e diz que o melhor do cinema é, nele, poder fazer tudo o que quiser. Refere-se ao lugar-cinema, espaço abandonado da cidade, onde, seguidamente, estupra a prostituta Bela (Dira Paes), cena que vemos projetada na tela do local. Não é uma abstração tamanha, porém, cogitar, a partir desses dois momentos, uma reflexão tida pelos próprios produtores da película acerca da pretensa liberdade da narração cinematográfica: é, a valer, viável retratar qualquer coisa e, com ela, causar um efeito calculado? Ou, ainda, há limites no que é, e como é, representado no cinema? Invariavelmente, tais questionamentos são antigos e esquivos de ponto final. Cabe-nos, apenas, discuti-los. Thamara Amorin¹ é Graduanda em Comunicação Social - Produção Cultural e Mídias Sociais, na UFPE, Campus Agreste. Referências: HASKELL, Molly. From Reverence to Rape - The Treatment of Women in the Movies. The University of Chicago Press, Chicago, 3ª ed., 2016. MULVEY, LAURA. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: . In XAVIER, Ismail. (org.) A Experiência do Cinema. Col. Arte e Cultura, no 5. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

  • FENEARTE 2022: Um panorama

    Leandro Ferreira¹ A 22ª edição da Fenearte reúne artistas das mais diversas localidades do Brasil e expõe suas obras em uma plataforma de divulgação de proporções ímpares, tensionando a linha tênue das concepções que tendem a diferenciar arte e artesanato, o evento apresenta provocações que se debruçam sobre a criatividade de pessoas plurais, atravessadas pelos desdobramentos de suas próprias cartografias e ensejos. Homenageado na escolha temática do evento, o movimento manguebeat está representado na totalidade das concepções estéticas que se teatralizam desde os portões de entrada. Em seus recém-completados 30 anos, é possível afirmar que o manguebeat se remonta na figura de um adulto que atua enquanto inspiração essencial aos jovens movimentos que buscam penetrar o panorama cultural pernambucano. Transitando entre caranguejos, detritos originários dos manguezais e grandes paredes de texto que didaticamente aclimatam o ambiente em uma atmosfera de mangue, o público é a todo tempo lembrado dos signos que povoam o imaginário relativo ao manguebeat. Em uma festa de aniversário cuja temática é o próprio aniversariante, a celebração às possibilidades que manifestam-se através do mangue norteia os olhares mais incautos às narrativas que formatam seus conceitos estéticos. Recebidos logo na entrada por um grande corredor cujas paredes são construídas através dos estandes que expõem peças essencialmente pernambucanos, é possível notar no artefatos reunidas, o contexto de artistas em suas diversas linguagens, se estendendo sobre o escopo da escultura, do bordado, da pintura, e a tapeçaria, dentre diversas outras incontáveis expressões da produção criativa. Se concebe nesse entorno um festim destinado a visão, incontestável aliada das experiências dos transeuntes que transitam pelo ambiente labiríntico das ruas construídas no Centro de Convenções. Nesse cenário repleto de estímulos sensoriais e enredos que se desembaraçam por entre as passagens do local, os visitantes assumem o papel de Teseu ao caminhar despretensiosamente pelos caminhos traçados pelas estruturas do espaço, explorando intuitivamente o que lhes apetece aos seus sentidos e descobrindo possibilidades outras de interesses. A presença dos folguedos tradicionais proporcionam a tônica musical da celebração, estão dispostos os ritmos que inspiraram a musicalidade do manguebeat. Entre maracatus, afoxés e blocos líricos, figuram espetáculos à parte, expressões da cultura popular cujas particularidades carnavalizam as interações com as pessoas ao seu redor. Enquanto isso, a atenção do público se divide entre os sabores dispostos na praça de alimentação, e os festejos se dimensionam enquanto sinestésicos: visão, olfato, tato e paladar operam em consonância para a formatação do deleite dionisíaco. A moda adquire o caráter de partícipe da festividade a partir das passarelas, o desfile intitulado “Inconsciente Coletivo”, realizado no dia 15/07, organizado pelo LabModa, integrante da UFPE, localizado no Campus Acadêmico Agreste, reverbera a ousadia do manguebeat ao introduzir peças e composições que buscam referências nas origens do movimento. Abrindo alas com a música “Monólogo ao pé do ouvido”, de Chico Science e Nação Zumbi, a coleção apresentada não deixa qualquer sombra de dúvida sobre seus intentos, modernizar o passado pode ser também uma evolução que concerne à moda. Modelos que calçam luvas em formato de garras de caranguejo e adornadas por modelagens descoladas ao corpo transitam por cima das passarelas em passos suaves, mesmerizando uma audiência cujos olhos permanecem vidrados em suas roupas, exceto quando os direcionam aos registros que cristalizam esse momento. Utilizando-se de uma linguagem pautada nas cores sóbrias, o primeiro ato do desfile pavimenta seu caminho com referências ao animal que encabeça o movimento do mangue, é a partir dessas composições que a modelo adquire uma relação totêmica. As referências às letras das músicas entoadas por Chico Science também estão dispostas aqui, tal qual as problemáticas que circundam o entorno do instante que origina o movimento, perpetuadas na cronologia do tempo, na contemporaneidade. O segundo momento da apresentação é marcada pela introdução às referências que tangenciam as tradições populares e os ritmos que são desdobrados nos arranjos do manguebeat. Enquanto o branco atual de plano de fundo para a franja vermelhas da blusa que veste a modelo, e remete aos caboclos de lança, símbolos máximos do maracatu rural, a tipografia ousada que grava a palavra “anamauê” nas pernas da sua calça intuem a adição da lírica improvisada por Chico Science em “Maracatu Atômico”. O resultado dessa ordenação gradual não poderia resultar se não em uma modernização da estética do mangue, representativa de uma tropicalidade estritamente pernambucana. Figuram nessa sessão, o emprego de adereços compostos por miçangas de origens naturais, assim como as cores dinâmicas e brilhantes, como laranja e amarelo remontam os aspectos formais e tonais dos crustáceos adotados enquanto signos do manguebeat. Os looks despojados atingem sua potencialidade máxima e estabelecem com firmeza paralelos facilmente reconhecíveis. A atual edição da Fenearte continua suas atividades até o dia 17/07, sendo indispensável a visita aos que desejam cultivar a percepção atenta aos novos sentidos proporcionados por intermédio das diferentes linguagens presentes em seu contexto, assim como ampliar suas perspectivas sobre as artes, ou, apenas se lançar em festa. ¹ Leandro Ferreira é graduando do curso de Design pela UFPE/CAA e faz parte da equipe da Revista Spia.

  • Azulão por ele mesmo

    Maria Clara Mendes Este vídeo ensaio busca trazer um pouco de Azulão, uma lenda viva da música brasileira, através do que ele fala, canta e gesticula. Como uma testemunha do seu próprio legado e da história do forró e de Caruaru, ninguém melhor do que Azulão para falar de si mesmo.

  • Três álbuns de Azulão

    Maria Clara Mendes e Mariana Gonçalves Um dos maiores nomes da música popular brasileira, referência pela sua voz e irreverência em cima dos palcos, Azulão representa a força de um artista predestinado a ser grande. Essa grandeza se manifesta musicalmente em uma discografia valiosa, repleta de clássicos, memórias e de personagens inesquecíveis. Com auxílio do cantor, músico e colecionador de LPs de forró, Natan Lima, separamos três álbuns de Azulão: ‘Eu Não Socorro Não’ (1975), ‘Azulão’ (1976) e ‘D. Tereza Arrependida’ (1992). Três álbuns lançados em momentos vitais da carreira de Azulão. Em continuidade ao especial em homenagem aos 80 anos do Mestre Azulão, convidamos todos a ouvir e a conhecer estes três álbuns: Eu Não Socorro Não (1975) Na década de 1970, Francisco Azulão já era uma figura conhecida por ter a sua voz em coletâneas, em um compacto duplo lançado em 1965, pela parceria com Camarão, além das inúmeras composições gravadas por gente importante como Marinês, Jacinto Silva, Messias Holanda, entre outros. Faltava um LP para chamar de seu e ele foi lançado em 1975 pelo Selo Esquema, agora com o nome artístico de Azulão. O Eu Não Socorro Não traz um repertório afiado com clássicos que ajudaram a pavimentar a carreira deste grande artista de Caruaru. Entre os sucessos se destacam: ‘Nega Buliçosa' (Thiago Duarte), ‘Mané Gostoso’ (Lídio Cavalcante e Adolfo da Modinha), e ‘Tropé de Cavalo’ (Abenildo Lucena e Genésio Guedes). Este LP também apresenta regravações de clássicos como ‘Severina Xique Xique’ (Genival Lacerda e João Gonçalves), ‘Esquenta Moreninha’ (Assisão), ‘Tem que ter Suor’ (Antônio Barros) e ‘Canção do Roedor’ (Cecéu) - gravada no mesmo ano pelos 3 do Nordeste. O disco tem o acompanhamento impecável do Conjunto Borborema, grupo que acompanhava Jackson do Pandeiro e que deu ao ‘Eu Não Socorro Não’ uma sonoridade fantástica. Azulão (1976) Depois de uma estreia impressionante com o clássico Eu Não Socorro Não, Azulão apresentou no ano seguinte, em 1976, uma verdadeira obra-prima. Se em seu primeiro LP a capa apresentava a figura ilustrada de dois personagens da música que dá nome ao disco, o segundo LP tem um jovem e elegante Azulão estampando na capa toda a sua magnitude. Este célebre LP se destaca por trazer músicas de compositores do agreste pernambucano como Genésio Guedes, Thiago Buarque, Brito Lucena, Juarez Santiago e Ivan Bulhões. A presença destes compositores evidencia que Azulão buscava não só cantar Caruaru, o objetivo era valorizar os artistas que nela existiam. Com um repertório alucinante do começo ao fim, é possível destacar os sucessos ‘Dona Tereza’ (Elias Soares), ‘Caruaru do Passado’ (José Pereira), ‘A Blusa Dela’ (F. Azulão e Ivan Bulhões), ‘Apanhadeira de Café’ (F. Azulão e Brito Lucena), ‘Amor tenho para lhe dar’ (F. Azulão, João da Condil e Sebastião Porfírio), e ‘Barra dos Coqueiros’ (Genésio Guedes, F. Azulão e Djalma da Hi-Hi). Podemos considerar que este é o primeiro LP de Azulão composto em sua maioria por músicas inéditas, sendo todas as músicas relevantes e conhecidas do público. Este disco mantém o mesmo nível do anterior na sonoridade, tendo novamente o acompanhamento do Conjunto Borborema. D. Tereza Arrependida (1992) Dez anos separam o último LP de Azulão, na gravadora Copacabana, do importantíssimo D. Tereza Arrependida, lançado de forma independente pela gravadora Ed Som. Segundo consta na contracapa, Azulão foi esquecido pelas gravadoras e ficou sem contrato, tendo que produzir por conta própria. Em 1992, em um novo trabalho independente, a resposta não poderia ser mais enfática para quem duvidava do Pequeno Grande: mais um LP de sucesso. O grande clássico deste álbum é ‘Afogando a minha dor’ (João Caetano), música obrigatória no repertório de muitos artistas caruaruenses. ‘O invocado’ (Luiz Moreno) traduz a versatilidade de Azulão em gravar uma música estilo rock. Também merecem destaques: ‘D. Tereza Arrependida’ (Biro Miranda e Azulão), ‘Coração sofredor’ (Gilvan Neves) e ‘Forró Chorão’ (Camarão). Este LP traz um Azulão alinhado com o que era produzido na época no que se refere ao forró e a música nordestina. A importância do LP D. Tereza Arrependida se encontra no retorno das vendas de Azulão com o que ele sabe fazer de melhor: cantar. Um agradecimento especial a Natan Lima. Destaque para algumas composições assinadas por Azulão Olhei o meu amor (Francisco Azulão - Camarão) Gravado por Azulão LP: Forró de Zé do Gato - 1965 Disponível: https://youtu.be/NpstmXxCrGI Ajuda-me (Francisco Azulão - Brito Lucena) Gravado por: Azulão Compacto duplo: Francisco Azulão - 1965 Disponível em: https://youtu.be/MxbQPzWdZOw Pé de Jatobá (Francisco Azulão - Jacinto Silva) Gravado por: Marinês e Sua Gente LP: As Melhores do Nordeste - 1969 Disponível no YouTube: https://youtu.be/IcY6wI-KZlM Sabiá na Bananeira (Paulo Duarte - Francisco Azulão) Gravado por: Messias Holanda LP: O Fino da Roça - 1969 Disponível em: https://youtu.be/ASq4OhPp7TQ Esperei na Fogueira (Francisco Azulão - Elias Soares) Gravado por: Marinês LP: Pau de Sebo Vol.5 - 1971 Disponível em: https://youtu.be/LydJxD7C008 Linda Menina Gravado por: Jacinto Silva LP: Pau de Sebo Vol.6 - 1972 Disponível em: https://youtu.be/zkPJtRgRLD4

  • Azulão: 80 anos depois, o dia 25 de Junho deveria ser dia de festa

    Maria Clara Mendes e Joyce Noelly No dia 23 de Junho de 1942 foi realizada a colheita do milho, pessoas se reuniram para celebrar a véspera da festa, a fogueira queimou até virar cinzas. Talvez balões tenham enfeitado o céu e a música esquentado o chão. Ao final do dia 24 de Junho, os vestígios da festa se guardaram para o dia de São Pedro. O que ninguém poderia imaginar é que no dia 25 de Junho de 1942 nascia um dos maiores artistas da história do forró e da cidade de Caruaru. 80 anos depois, o dia 25 de Junho deveria ser dia de festa. Um personagem ilustre, Francisco Bezerra de Lima, imortalizado Azulão, nasceu em Serra dos Cavalos e se criou em Brejo de Taquara. Só depois Azulão passou a morar na cidade de Caruaru, primeiro no Alto da Banana e posteriormente na gloriosa Rua Preta. O resto não só virou história, virou música e um pedaço do que conhecemos como a Capital do Forró. Reconhecido por uma voz inconfundível, uma presença arrebatadora e um repertório que se confunde com a história de multidões, abordar o legado de Azulão é um desafio imenso e necessário. Quis o destino que a volta das festividades do São João em Caruaru, interrompidas pela pandemia da COVID-19, coincidisse com os 80 anos de Azulão e com a aposentadoria dele dos palcos. Até aqui foram 60 anos de carreira, um compacto duplo, LPs aclamados, participações em coletâneas, um CD e um DVD lançados. Uma arte pulsante de um artista inquieto, talentoso e pernambucano de tantos espaços que formam uma só presença: Caruaru, Rua Preta, Brejo de Taquara e Serra dos Cavalos. Impossível separar o artista Azulão das suas origens, é isso que o alimenta e nos inspira a ouvi-lo. A história de Azulão se confunde com Caruaru e com a história de personagens importantes da cidade e do forró. Azulão participou das caravanas de Ivan Bulhões e Lídio Cavalcante. Compôs a música ‘Pé de Jatobá’ (1969) com Jacinto Silva, sucesso na voz de Marinês. Integrou a primeira banda de forró do Brasil, a Bandinha do Camarão. Em parceria com Mestre Camarão, lançou a sua primeira música ‘Olhei o meu amor’ (Azulão e Camarão), na coletânea Forró do Zé do Gato (1964). Gravou três músicas no LP Retrato de um Forró (1974), gravado também por Camarão e Sandro Rogério. Conviveu com Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Jacinto Silva, Messias Holanda, entre outros mestres. Lançou álbuns inesquecíveis que marcaram época e influenciaram gerações de brasileiros. Não há testemunha melhor do legado de Azulão do que a sua própria obra. Nela está impressa a originalidade de um artista que sempre soube dialogar com o novo e com as suas vontades e crenças. Esta originalidade aparece nas capas que trazem fotografias de um jovem e vaidoso Azulão, vestindo roupas estampadas, de cores vibrantes, calça boca de sino e black power. A singularidade de Azulão fica evidente em sua aparência e nas músicas que fazem referência a religiosidade dele. O vínculo de Azulão com as religiões de matriz afroindígena é um aspecto que só o próprio artista para elucidar, mas encontramos indícios de sua fé em canções como a belíssima ‘Cabecilé’ (Francisco Azulão), na qual Azulão faz honrarias à sua cabeça (ou Ori), menciona a orixá Iansã e logo em seguida brada a saudação ao orixá Xangô, que dá nome à canção. No catolicismo, Xangô é sincretizado como São João. Azulão nasceu um dia depois do dia de Xangô. Na década de 1970, em meio a uma natural concorrência entre os próprios cantores, Azulão se destacou pela sua maneira única de cantar e interpretar o que cantava. Em ‘Dona Tereza’ (Elias Soares), presente na obra-prima de 1976, Azulão muda a voz nos trechos que representam a personagem Dona Tereza. Ele não só intercala os falsetes, como traz consigo uma performance com movimentos corporais para representar a personagem. Estes movimentos corporais são assinaturas do artista Azulão, a sua voz e interpretação são inconfundíveis. Estas características tão próprias do Pequeno Grande influenciaram toda uma geração de artistas que vieram depois, sendo ele considerado a maior voz de Caruaru. A cidade de Caruaru tem um espaço imenso na vida e na obra de Azulão com várias canções exaltando as histórias e personagens da Princesinha do Agreste. Estas histórias estão eternizadas em ‘Caruaru do Passado’ (José Pereira), ‘Capital do Forró’ (Walmir Silva e F. Azulão), ‘Caruaru do meu tempo’ (Juarez Santiago e Lula Torres), entre outras. Só vivendo e conhecendo Caruaru com propriedade para dar voz a tantas memórias de forma tão autêntica. É sempre importante destacar que ao longo de sua carreira, Azulão tratou de gravar músicas de compositores de Caruaru e região. Segundo Natan Lima, músico e conhecedor do forró, Azulão foi o primeiro artista a gravar uma música de Petrúcio Amorim, a canção ‘Confissão de um Nordestino’ dá nome ao LP lançado em 1980. Em sua apresentação de despedida, realizada no Pátio do Forró, no dia 17 de Junho, o Mestre Azulão, já bastante fragilizado pelos sinais do tempo, cantou algumas poucas canções. Mais do seu imenso repertório foi apresentado por artistas locais em participações especiais, como o jovem sanfoneiro Luan Nascimento, porém quem realmente conduziu o show foi seu filho Azulinho, que há anos divide o palco com o pai, inicialmente como backing vocal. Azulinho aproveitou a oportunidade para mostrar seu trabalho solo, cantando alguns piseiros que gravou recentemente. Algo muito oportuno numa noite em que o Pátio do Forró estava lotado de pessoas para ver o show do artista seguinte, João Gomes, o maior nome do gênero na atualidade. Tão lotado que desencorajou parte do público de Azulão a ver seu show pessoalmente. Atualmente Azulão tem o seu nome em um dos principais palcos do São João de Caruaru. O Polo Azulão representa um espaço alternativo dentro da programação do São João da Capital do Agreste. Curiosamente este palco tão importante pouco se aproxima do legado de Azulão, ficando a homenagem restrita ao nome do mestre. Por mais que a homenagem seja válida, seria interessante discutir de que forma Azulão poderia estar mais presente neste palco. Neste ano, o Polo Azulão apresentará um tributo à obra de Azulão, onde, no dia 26 de Junho, artistas convidados terão a missão de interpretar os clássicos do Mestre. Um bom sinal, mas que a iniciativa não se limite a uma homenagem protocolar pela despedida de Azulão dos palcos. Afinal, um artista que soube falar de si mesmo, do seu povo e das suas origens, merece ser enaltecido em vida por tudo que nos deu. O forró, a cidade de Caruaru e a música brasileira não seriam os mesmos sem Francisco Bezerra de Lima, nosso Mestre Azulão. As músicas de Azulão despertam memórias e saudades de pessoas e de lugares, nos trazem conforto e divertimento. Falar de Azulão compreende uma parte considerável da história do Brasil e do que este país é feito: festa, música e coragem. Ele se retira dos palcos e continuará vivo em nossas vitrolas, rádios, playlists e por cada pedaço dos lugares que encantou. Muito obrigada, Mestre. Um agradecimento especial a Natan Lima, a Luiz Ribeiro e a Azulinho. Referências: MACEDO, Eliane; PAIVA, Henrique. Azulão, o Pequeno Grande. 5 de Março de 2017. Disponível em: . Acesso em 21 de Maio de 2022. LIMA, Natan. Entrevista concedida a Maria Clara Mendes. Revista Spia, Pernambuco, 2 de Junho de 2022. [A entrevista foi realizada pelo WhatsApp] TV Asa Branca. Filhos da Terra – Azulão O Pequeno Grande. YouTube, 05 de Maio de 2019. Disponível em: . Acesso em 01 de Junho de 2022. TVPE. Azulão - São João da TVPE. YouTube, 13 de Julho de 2010. Disponível em: . Acesso em 22 de Junho de 2022.

  • Especial Azulão

    Especial comemorativo dos 80 anos do pequeno Grande. Há exatos 80 anos nascia o pernambucano Francisco Bezerra de Lima, o nosso Azulão, filho honorário de Caruaru. Dono de uma voz inconfundível, uma presença arrebatadora e um repertório que se confunde com a história de multidões, nosso mestre forrozeiro tem em seus 60 anos de carreira uma obra pulsante que é impossível separar das suas origens. Nela está impressa a originalidade de um artista que sempre soube dialogar com o novo e com as suas vontades e crenças. No último dia 17 de junho de 2022, Azulão decidiu se aposentar e sua Caruaru, já tão diferente do tempo de menino, foi o palco escolhido para essa despedida. Como agradecimento por sua grande contribuição para a cultura popular brasileira, a SPIA produziu um especial para comemorar junto com vocês o aniversário desse pequeno Grande. Muito obrigada, Mestre. Em “Azulão: 80 anos depois, o dia 25 de Junho deveria ser dia de festa”, Maria Clara Mendes e Joyce Noelly escrevem sobre a história e legado de Azulão, apresentando apontamentos pertinentes quando discutimos cultura no nosso país. Em “Três álbuns de Azulão”, Maria Clara Mendes e Mariana Gonçalves com auxílio do cantor, músico e colecionador de LPs de forró, Natan Lima, separam três álbuns de Azulão que manifestam e representam musicalmente uma discografia valiosa, repleta de clássicos, memórias e de personagens inesquecíveis. E por fim, em “Azulão por ele mesmo”, Maria Clara Mendes busca trazer um pouco de Azulão, através do que ele fala, canta e gesticula. Em suas palavras: “ninguém melhor do que Azulão para falar de si mesmo”. Um agradecimento especial a Natan Lima, a Luiz Ribeiro, a Azulinho e a Márcio Correia.

  • O terceiro ato da Nação Zumbi

    Texto escrito por Leandro Ferreira A efervescência de ideias no litoral pernambucano dos anos 90 trouxe consigo a rebeldia característica da juventude, expressa através do acolhimento das novidades propostas por uma contemporaneidade cada dia mais globalizada. As novas teias de movimentação de informação, a popularização das tecnologias digitais e possibilidades de ser-fazer se instalaram com sucesso entre as questões que atingiam os enérgicos habitantes desse Recife lisérgico, que se auto intitularam mangueboys e manguegirls. É no cerne desse cenário caótico que emerge uma das principais potências que culminaram na formatação dessa conjuntura criativa. A Nação Zumbi marcava seu lugar no tempo de um Recife assombrado pelo desprezo às urgências dos seus jovens. É possível afirmar que desde aquela época, o grupo já dispensava apresentações: a criação do Manifesto dos caranguejos com cérebro cumpriu com êxito o papel de discernir os objetivos desse bando dissonante, herdeiros de um passado culturalmente irredutível, direcionados a um futuro inexplorado, no qual certamente fariam história. A história da Nação Zumbi é indissociável a de Chico Science. Juntos estrearam seu primeiro álbum, denominado “Da lama ao caos”, no ano de 1994, considerado um disco de ouro por atingir vendas superiores a cem mil cópias. A participação do então vocalista na concepção do primeiro álbum da banda foi essencial com a tônica dos vocais inflamados desse maestro da cultura, que conciliaria as essências da música popular nordestina e as novas perspectivas oriundas dos ritmos vindos do norte, atingindo uma consonância ímpar. Logo em seguida, o segundo projeto do grupo também surtiu efeito similar, obtendo um número de vendas tão alto quanto o anterior, sendo primordial para que Chico Science e Nação Zumbi se consolidassem enquanto expoentes da nova cena artística pernambucana, além das aspirações que cerceavam sua geração. Entretanto, apenas um ano após o lançamento de Afrociberdelia, Chico Science se encantou. Levou consigo a voz que exprimia os intentos de uma massa a qual representava, deixando uma lacuna que nenhum minuto de silêncio poderia ser capaz de preencher. O primeiro disco idealizado após a ruptura da primeira fase é marcado pelo fim do luto e a busca por um recomeço. É nesse sentido que Rádio S.Amb.A, datado no ano 2000, apresenta Jorge du Peixe enquanto vocalista e demonstra a solidez das estruturas nas quais o grupo se ergueu. A virada do século atuou de maneira benéfica para o conjunto, permitindo a amplitude de gêneros da banda que logo em seguida se reinventaria dentro do rock e flertaria com o reggae, recompondo as tradições rítmicas que se desdobram no Nordeste. A discografia traçada no ínterim dessa década é marcada pela pesada experimentação, essa que seria o elemento de elo nas obras concebidas durante a etapa, e que já é possível de se notar no destaque ao homônimo Nação Zumbi, lançado em 2002. Ressignificando as experiências que estão no escopo de sua denominação, abraçando referências à cultura pop oriunda das séries norte- americanas, e em um meneio de balanceamento, estipulando um retorno às tradições afro-brasileiras do Candomblé. A mobilidade do caminhar rápido dessa orquestra de instrumentos não usuais alcança os passos contínuos da globalização, andando ao seu lado, sem perder sua identidade. Após 31 anos de atividades intensas, a banda anuncia um período indeterminado de hiato, para que os membros possam se dedicar a outros projetos. Ao final desse ciclo, pouco mais de um mês após a última apresentação da Nação Zumbi nos palcos, reverberam os ecos da musicalidade da banda que ousou alçar a ascensão para além dos manguezais da capital pernambucana. Cruzando rios, pontes e overdrives no mundo inteiro, as atemporais inquietações que atravessaram tanto as composições quanto o imaginário cultural pernambucano vão de encontro ao descanso merecido. Durante esse período, o ritmo compassado das batidas dos corações cujas vidas tiveram como trilha sonora a discografia do grupo, soletram a palavra saudade. Enquanto os novos horizontes continuam incertos, e pairam as dúvidas sobre o porvir da Nação Zumbi, é preciso considerar que um hiato pode significar reticência ou ponto final, e a sonoridade incansável do grupo, repousa. É nesse momento de pausa dramática, capaz de remontar a distância entre as duas principais fases marcantes à constituição desse multifacetado aglomerado de talentos, que se ouve sibilar o tom que norteia a busca por novas notas que possam integrar a sonoridade do conjunto.

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