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Santa Puta: O feminino marginal no cinema de Cláudio Assis

Sobre sexo e violência como narrativas fundamentais da construção das mulheres na trilogia do diretor



Thâmara Amorim¹


A menina, guiada pelo pai/avó, sobe em uma pequena elevação da calçada, onde encontra-se, no negrume da noite, um ponto de luz, tal qual um holofote. Sob a impenitência do espaço isolado, o criador despe e posiciona a criatura, submissa e mecânica, para, depois, sentar-se ao seu lado, só um pouco afastado, como se expusesse ao público sua obra de arte. Expande-se o quadro e contemplamos a audiência — de pronto, o espetáculo torna-se ainda mais onírico, obtém caráter religioso, de maneira que avistamos, uma santa nua, em cima do altar, observada pelos seus devotos fiéis. A câmera, então, foca somente em um dos espectadores, o único que não parece ser mero observador passivo, para terminar na imagem altiva e, um tanto longínqua, de um cruz. Ora, Auxiliadora, nome da criança desnuda, é, de fato, uma das denominações da Virgem Maria.


A cena descrita acima é a apresentação do núcleo protagonista do controverso Baixio das Bestas (2007), longa-metragem dirigido por Cláudio Assis. No filme, Auxiliadora (Mariah Teixeira), uma adolescente de 16 anos, é explorada sexualmente por Heitor (Fernando Teixeira), seu avô e, segundo rumores, pai, que a exibe sem roupas para os homens da Zona da Mata pernambucana, remota região canavieira. O público – ou assembleia – do número de tão grotesco dueto (a menina e o parente desempenham papéis correlatos na atração aberrante) é formado, sobretudo, por pessoas pobres da área: trabalhadores braçais do canavial, bóias frias e caminhoneiros. Contudo, o espectador que nos é mostrado em primeiro plano, Cícero (Caio Blat), trata-se de um jovem da classe média, que estuda na capital e passa grande parte de seu tempo de tela deitado, e emburrado, no sofá da casa da mãe. O mesmo, no entanto, sente-se confortável em Baixio, porque é lá que seus privilégios de classe atuam com mais força, e, assim, pode presenciar e tomar parte da exploração dos que lhe estão à margem.


Logo, duas dicotomias marcam a obra: a oposição entre o interior e a cidade grande — atraso e/ou progresso, bem como o paradoxo da mulher que é, ao mesmo tempo, santa e puta — essa última dualidade faz-se presente, de modo similar, em Amarelo Manga (2002) e Febre do Rato (2011), os dois outros filmes do diretor. No primeiro, longa de estreia de Assis, Lígia (Leona Cavalli), dona do Bar Avenida (único lugar onde aparece), é uma mulher cínica e frustrada, sempre reagindo vigorosamente ao constante e diário assédio que a exaure e exaspera. Quando inicia-se a película, que se passa em um único dia, a personagem olha diretamente para a câmera e desabafa, não sem certa desfaçatez: “(...) E eu… não tenho encontrado alguém que me mereça. Só se ama errado. Eu quero é que todo mundo vá tomar no cu”. Com efeito, todos os homens frequentadores do bar a veneram, mas sabem que ela não concede abertura a ninguém.


Em contrapartida, Kika (Dira Paes) é uma esposa exemplar, símbolo do recato evangélico e da obediência cristã: o marido, Wellington (Chico Díaz), açougueiro com fama de canibalismo e brutalidade, a adora religiosamente, não obstante a traia com uma figura que lhe é, à primeira vista, completamente antagônica. Em seu célebre livro From Reverence to Rape (2016), Molly Haskell explora a distinção narrativa da boa e da má mulher no cinema hollywoodiano posterior a Depressão, parâmetro, ainda, relevante:


(...) A virgem era uma figura positiva e primária, honrada

e exaltada para além de qualquer mérito que possuísse

(...) já a “puta” (...) era publicamente castigada e rechaçada

— mas, privadamente, era ela a procurada pelos homens.

(HASKELL, 2016, p.16, tradução nossa.)


De fato, Wellington chega a admitir que sua adorada companheira não tem o desempenho sexual que ele gostaria, uma desculpa para a traição. A personagem, então, parece, em termos woolfianos, corresponder ao perfeito “Anjo do Lar”; enquanto Lígia traduz a decadência desse ideal. Ambas, contudo, são expostas em atos de pressuposta rebeldia: ao ser provocada por um cliente, Lígia levanta o vestido e exibe a vagina, na frente de todos, que nada podem fazer, senão olhar; já Kika encontra-se com o próprio Cláudio Assis, que a interpela na rua e diz: “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”. Tal fala do diretor/ator serve como prenúncio de sua revolta no fim do filme.


Similarmente aos tipos citados acima, Eneida (Nanda Costa), uma das protagonistas de Febre do Rato (2011), é a musa inalcançável do poeta Zizo (Irandhir Santos) — desse modo, ela também carrega o status de sacralidade e reverência que possuem Auxiliadora, Lígia e Kika. Em uma espécie de sarau na casa de Zizo, o artista pergunta a jovem se ela gostaria de fazer sexo com ele, ao que Eneida responde negativamente: de pronto, ela entra para a categoria romanesca das relações impossíveis. E, na contemplação do desespero do poeta, um de seus amigos reflete: “É, nego…quando a gente leva um ‘não’, a cabeça do pau fica dizendo ‘sim’”.


A partir dessa fala, percebe-se que sua inacessibilidade de deusa inspiradora encontra-se, na verdade, em constante corda bamba — Zizo e Eneida iniciam um relacionamento complexo, entre a amizade e o flerte, que tem seus limites sempre transpostos pelo poeta: “Só tô querendo entender porque você insiste em não ficar comigo.” Em uma das cenas de maior tensão, quando os personagens estão sozinhos em um barco, durante uma festa junina, Zizo ameaça estuprar Eneida, que enrijece o corpo em alerta e reage corajosamente: “Tu acha que eu tenho medo de tu, é? Conhecesse alguém que tem medo de tu?” Ao que ele responde, em uma indicação de sua resolução obsessiva de conseguir o que deseja: “Conheço. Eu mesmo.” Em seguida, porém, ameniza a situação: “Não vou fazer nada contigo, tu sabe” — garantia bastante vã, depois da intimidação feita. De qualquer modo, Eneida lhe concede um desejo, mas tal concessão, após a insinuação de violência, torna a cena bastante vaga — a jovem age, ou não, por completa vontade própria?


Na contemporaneidade, nossa ideia comum de musa é o retrato de uma mulher, que serve, somente, para a inspiração artística e intelectual de um homem. Em si mesma, contudo, ela é apenas um objeto passivo, talhado e refletido pelas mãos do artista. Seu tratamento de divindade é, pois, instável. Voltemos, então, a Baixio das Bestas: a estática Auxiliadora é tida como virgem pelos seus fiéis, uma característica que, verdade ou não, aumenta o desejo dos homens que a veneram. Com Heitor como “proteção”, ela não chega a ser tocada pelos audientes, mas Cícero não se conforma com seu afastamento dos que a observam — diferentemente dos outros, ele não acredita em sua virgindade e não é saciado, portanto, pelo voyeurismo da mera exposição da nudez da menina — por conseguinte, ele a estupra, momento que a condena, de vez, à prostituição.


Estas personagens femininas estão, logo, sempre à beira da zona. Auxiliadora, calada e maquinal, é controlada, desde cedo, pelas vontades do avó/pai, e, por isso, quase não diz nada durante o longa. Somente no final, quando foge de casa e se estabelece em um bordel, a adolescente fala com maior frequência — tal abertura apresenta uma emancipação nada emancipatória: Auxiliadora, quando foge de seu dominador-indivíduo, não escapa de seu dominador institucional, o patriarcado. É curioso, inclusive, como a não-conformação dessas mulheres, sempre acaba em, pelo menos, relativa conformidade, uma vez que, de modo similar, todas cedem às fantasias sexuais de um e de outro, bem como as dos que assistem aos longas: conforme Laura Mulvey, em seu clássico artigo Prazeres Visuais e Cinema Narrativo (1983), no contexto fílmico, há um mecanismo voyeur, que dá-se por meio da saciação erótica proporcionada pela imagem na tela:


(...) em sua totalidade, o cinema dominante e as convenções nas

quais ele se desenvolveu sugerem um mundo hermeticamente

fechado que se desenrola magicamente, indiferente à presença

de uma platéia produzindo para os espectadores um sentido de

separação, jogando com suas fantasias voyeuristas. (...) Embora

o filme esteja realmente sendo mostrado, esteja lá para ser

visto, as condições de projeção e as convenções narrativas vão

dar ao espectador a ilusão de um rápido espionar num mundo privado.

Entre outras coisas, a posição dos espectadores no cinema é

ostensivamente caracterizada pela repressão do seu exibicionismo

e a projeção no ator, do desejo reprimido. (MULVEY, 1983, p.441)


Tal imagem na tela é, contudo, a mulher, enquanto o homem é o “dono do olhar” (p.444). Assim, a aparição de personagens femininas tende a esbarrar no impacto erótico, um meio claro de objetificação: quando a altiva Lígia coloca uma perna sobre a mesa e sobe o vestido, a visão de sua vagina, centralizada em primeiro plano, serve, claro, aos espectadores ficcionais, mas também aos reais. Faz-se interessante, então, a recorrência do corpo feminino nu no cinema de Cláudio Assis, bem mais constante que a nudez masculina. A padronização estética desses corpos é, igualmente, algo a ser questionado: a expressão da sexualidade feminina, sem pretensão sexista, não deveria ser plural?


Outro ponto de inquietação, são os limites da representação cinematográfica do estupro. À guisa de parâmetro, o longa-metragem quebequense A Scream from Silence, dirigido, em 1979, por Anne Claire Poirier, discute essa questão com rigor intelectual e social. Há na obra dois núcleos narrativos com caráter metalinguístico: uma enfermeira, Suzanne, que é estuprada e precisa lidar com o trauma pós-violência; e duas outras personagens, a diretora e a editora desse filme dentro do filme, que assistem à sequência de violência sexual e conversam sobre as possibilidades de exibí-la sem intenção erótica ou estimulante. Objetivando driblar a fetichização do olhar patriarcal, o estupro de Suzanne é gravado pela perspectiva da vítima e, cena demorada, mostra sob uma luz horripilante o crime. A diretora observa: “Nenhum homem pode identificar-se com este estuprador, porque ele é repulsivo demais”. A editora, concorda: “Eles verão isso como algo que se lê no jornal… que aconteceu com outra pessoa, bem longe”. Pouco depois, no entanto, ambas duvidam de tamanha positividade e se questionam se há, de fato, qualquer real possibilidade de, ao mostrar cenas de assédio, esquivar-se inteiramente do voyeurismo cinematográfico.


Em Baixio das Bestas, a violência sexual parece ser condição irrevogável das mulheres da região, pois que, a miséria, sempre contexto dos filmes de Assis, sentencia essas personagens à uma marginalidade dupla: pobre e mulher. Com efeito, a ideia é extremamente válida, mas sua reprodução é um tanto falha, aspecto perceptível, principalmente, no filme protagonizado por Auxiliadora. Sabe-se que parte da controvérsia ao redor dessa obra surge, de fato, de um conservadorismo ignorante: uma noção estereotipada do cinema brasileiro é que nele só há sexo e, com certeza, esse lugar-comum perseguiu a cinematografia de Assis. No Baixio, contudo, nunca se trata de relações sexuais e sim de violência e pedofilia — multiplica-se, logo, as responsabilidades. Decerto, o uso das câmeras sem proximidade, ou atenção aos detalhes dos corpos envolvidos nas cenas, é um recurso estratégico notável, mas, ainda, insatisfatório: quando Everardo (Matheus Nachtergaele) violenta a prostituta Dora (Hermila Guedes), observamos o episódio de cima — como o voyeur do famoso livro de Gay Talese, The Voyeur’s Motel (2016) —, o que não destitui a cena de erotização.


Entretanto, o incômodo mais pungente dá-se, na verdade, com a imagem de Auxiliadora. A protagonista é, na ficção, uma criança e, não obstante, é a personagem que aparece desnuda com maior constância — o plot fundamenta essa frequência, mas não a isenta de ser problemática.


Em certo ponto, Everardo olha diretamente para a câmera, acontecimento único, e diz que o melhor do cinema é, nele, poder fazer tudo o que quiser. Refere-se ao lugar-cinema, espaço abandonado da cidade, onde, seguidamente, estupra a prostituta Bela (Dira Paes), cena que vemos projetada na tela do local. Não é uma abstração tamanha, porém, cogitar, a partir desses dois momentos, uma reflexão tida pelos próprios produtores da película acerca da pretensa liberdade da narração cinematográfica: é, a valer, viável retratar qualquer coisa e, com ela, causar um efeito calculado? Ou, ainda, há limites no que é, e como é, representado no cinema? Invariavelmente, tais questionamentos são antigos e esquivos de ponto final. Cabe-nos, apenas, discuti-los.



Thamara Amorin¹ é Graduanda em Comunicação Social - Produção Cultural e Mídias Sociais, na UFPE, Campus Agreste.




Referências:


HASKELL, Molly. From Reverence to Rape - The Treatment of Women in the Movies. The University of Chicago Press, Chicago, 3ª ed., 2016.

MULVEY, LAURA. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: . In XAVIER, Ismail. (org.) A Experiência do Cinema. Col. Arte e Cultura, no 5. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.



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