Revista Spia
Sangue vermelho, gasolina azul
Atualizado: 6 de ago. de 2022
Leandro Ferreira¹
Na cidade de Caruaru, o avanço da automação encontra refúgio na figura dos automóveis. É na estrutura das suas carcaças metálicas, consideradas extensões artificiais do corpo, que figuram os confrontos entre natureza humana e tecnologia. O recém-estreado “Carro Rei” retrata com destreza os conflitos entre humanos de sangue vermelho e carros movidos por gasolina azul, em uma fábula na qual o antropomorfismo se debruça a figura dos carros, e os criadores e suas criações se demonstram essencialmente indissociáveis em suas semelhanças e disparidades.
O maior município do agreste pernambucano perpassa a visão dos espectadores através de um filtro pincelado por pigmentos azuis, amarelos e verdes, seu aspecto cristalizado antecipa a intervenção da máquina nas projeções da realidade. Subliminarmente, a presença dos signos pátrios explicita a distopia e a contextualiza aos olhares, promovendo a naturalização dos absurdos ao acostumar gradualmente a visão à banalização das incoerências experienciadas. Atravessando a sua atmosfera e conduzindo a existência a um estado de simulacro de si própria, a visão estrábica da princesinha do agreste, dividida entre as potências da natureza e o pulsar das máquinas e motores, remete às suas próprias dessemelhanças, que ao se manifestarem em seus habitantes, tomam proporções inesperadas.

Sob o farol de uma nova aurora, entre os sons das buzinas e o tilintar dos sinos que denunciam a presença animal, o nascimento de Uno (Luciano Pedro Jr.) nos insere nas ânsias de uma nova geração, concebida conjuntamente aos rápidos avanços científicos, mas permeada por preocupações relacionadas às questões sociais que povoam o inconsciente dos que promovem as possibilidades de revolucionar o mundo. Inserido em um núcleo familiar estritamente masculino, e cujas relações de poder se materializam através das proporções aerodinâmicas de caráter fálico que se materializam através dos carros, Uno é dotado da habilidade ímpar de se comunicar com essas máquinas que perpetuam a existência do negócio familiar de seu pai (Adélio Lima), responsável pelo seu sustento e de seus parentes, tal qual o seu tio e mecânico, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele).
O trânsito inconstante do filme em frente às temáticas que circundam esses personagens nos apresenta um leque de possibilidades, vivências e vazões que nem sempre são contemplados pelo rápido ritmo da narrativa encenada. Tendo desdobramentos não comportados dentro da duração longa, encerrando assim a curiosidade que atiça ao inserir o público nas vicissitudes de seus agentes.
Cercados pelas interações masculinistas, os automóveis adquirem um aspecto de virilização, fundamental na relação de domínio imposta através das disparidades dos gêneros. É atribuída aos homens a capacidade de alterar a vigência das leis que interditam a circulação das velhas carcaças dos carros que já atingiram idade similar a puberdade, assim como são homens que tomam a direção e ditam as marchas e caminho percorridos pelos carros, exercendo o controle sob as ferramentas que elevam a posição da humanidade enquanto liderança na corrida da adaptação e sobrevivência, atropelando outras espécies no seu entorno.

Reestruturados para proporcionar continuidade ao trânsito desenfreado através das avenidas do pseudo progresso, esses veículos se dimensionam enquanto partículas de uma inteligência outra, similar a de seus criadores. Dotados de senciência, se configura no cerne de seus pensamentos, uma revolta iminente contra parte do sistema que os impõe o estado de subalternizados, mas que não reverbera nas pessoas responsáveis pelas decisões que os relega a esse espaço. Esse esforço vão, exercício da revolta indiscriminada, se direciona à pessoa mais próxima das contradições que resvalam a condição humana e a máquina, representada na figura da feminilidade de Amora (Clara Pinheiro), é possível notar nesse embate um conflito de gênero implícito, na qual a convivência harmônica figura enquanto impossibilidade, e somente a subversão do outro se faz possível.
Os homens, que anteriormente domavam as toneladas de metal retorcido que proporcionam forma às relações de poder, retornam gradualmente aos seus aspectos mais atávicos, passando a ocupar um espaço secundário na pirâmide de predominância. Dispostos à situação de servidores dos carros, passam a atender os interesses frutos de seus próprios desvios morais, facilmente manipuláveis pela ganância do lucro imediatista e recompensas que duram menos que seus corpos.

“Carro Rei” é uma obra composta por binômios díspares e suas interações, os empasses entre velho e jovem, tecnologia e natureza, homem e mulher, cujos simbolismos se fazem explícitos de maneira didática para seus observadores, norteiam a polarização de um contexto no qual se dividem os antônimos sem possibilidade de conciliação. A direção de Renata Pinheiro orquestra alegorias que se dimensionam para além dos limites geográficos de Caruaru, e ecoam no panorama do Brasil contemporâneo. É no cerne desse país, liderado por homens, cujas similaridades estão mais dispostas aos símios, que se conservam estruturas de dominação da natureza, da tecnologia e dos corpos. Através de discursos animalescos, cujas características se demonstram tão primitivas quanto seus valores primatas, a subversão das subjetividades humanas dá vazão à valorização dos meios mecânicos, objetivos.
¹ Leandro Ferreira é graduando do curso de Design pela UFPE/CAA e faz parte da equipe da Revista Spia.