Alguns filmes tem a hora, o lugar e as pessoas certas. No início dos anos 80, no agreste pernambucano, dois amigos se uniram a outros amigos e fizeram história com o pouco que tinham ao alcance.
‘A Peleja do bumba-meu-boi contra o vampiro do meio-dia’, dirigido por Luiz Lourenço e Pedro Aarão, ao que tudo indica, é o primeiro filme realizado na cidade de Caruaru, interior de Pernambuco. Tudo começou em 1981 quando as filmagens foram iniciadas na marra com o uso de câmeras Super-8. Por dificuldades técnicas e financeiras, o trabalho foi interrompido e retomado cinco anos depois, agora utilizando também o formato u-matic.
Um filme-vídeo histórico e heróico sobre a peleja da cultura popular. Esta é uma possível interpretação para uma obra que desperta curiosidade e muitos significados. Com uma pegada documental e ficcional, A Peleja tem uma proposta ousada e necessária que se reflete nos depoimentos dos artistas populares de Caruaru, e sobretudo, na imagem do vampiro. Logo de cara somos apresentados a uma paisagem escura e repleta de lixo, uma placa traz os dizeres: Terceiro Mundo. É um prenúncio do que está por vir, A Peleja tem uma mensagem direta, simbólica e com margem para muitas interpretações.
De forma poética e metafórica, a narrativa traz a cultura popular (o bumba-meu-boi) em um duelo contra os poderes político e econômico (o vampiro). A caracterização do vampiro se assemelha à imagem de Tio Sam, um dos símbolos dos Estados Unidos. O vampiro aparece em várias situações dentro da narrativa - como se quisesse nos lembrar dos inimigos que nos cercam cotidianamente. Ele está nas ruas da cidade, na feira, atacando um senhor na fila do banco, ele tem posses e um aspecto teatral em sua presença marcante.
Os depoimentos de nomes históricos da cultura popular são significativos. Mestre Galdino (ceramista e poeta), Antônio Medeiros (ator e diretor), Olegário Fernandes (poeta e editor), Mestre Gercino (bumba-meu-boi), Tavares da Gaita (músico e artesão), Mestre Otilio (mamulengueiro) e Francisco Sales Areda (poeta). Em cada fala um testemunho das dificuldades de quem faz a cultura popular, uma dificuldade do passado que persiste no presente.
E como é importante ouvir cada depoimento. A Peleja nos permite ver e ouvir estes mestres e poetas que tinham muito a dizer. O filme é um registro histórico destes personagens e do trabalho realizado por eles, é também um registro histórico de Caruaru, uma cidade que se transformou completamente com o passar dos anos. As cenas do vampiro caminhando pelas ruas da cidade, subindo as escadas e olhando para a feira são memoráveis. A presença de tanta gente com o Boi Tira-Teima na rua, no duelo contra o vampiro, é de arrepiar.
Há muito para se emocionar ao assistir ‘A Peleja do bumba-meu-boi contra o vampiro do meio-dia’. Uma das maiores emoções vem da própria existência do filme e da coragem que Pedro e Luiz tiveram para criar uma obra autêntica. A Peleja não existiria com a mesma paixão e verdade pelas mãos de outros diretores. Os dois tinham o olhar e as experiências que a obra necessitava para existir. Eles tinham o sonho de fazer o filme, e hoje, 40 anos depois, o filme ainda nos inspira a sonhar, criar e refletir sobre a nossa cultura.
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Referências:
A PELEJA DO BUMBA-MEU-BOI CONTRA O VAMPIRO DO MEIO-DIA. Direção: Luiz Lourenço e Pedro Aarão. Pernambuco: 1986. DVD (30 min)
SCHWARZ, Ana. Entrar e sair da tela: uma viagem móvel. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Pós-graduação em Antropologia no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2002.
Texto por Mª Clara Mendes.
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