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“Por Trás Da Linha De Escudos”: Os Limites Estabelecidos Entre Os Militares e a População

Atualizado: 9 de mai.

Documentário de Marcelo Pedroso trás reflexão acerca dos antagonismos e tensões entre grupos como obstáculos substanciais no processo de transformação social


Crítica por Louise Farias e Naely Barbosa


Foto por Naely Barbosa


O principal objetivo do cinema documental é mostrar um aspecto da realidade, sob determinado enfoque e enquadramento, através do olhar de um realizador. Entretanto, acessar o outro pode ser uma tarefa demasiadamente complexa, e nem sempre chega a ser alcançada da maneira como se espera. Da mesma forma, é possível que o diretor tenha uma expectativa inicial do efeito produzido pelo filme, mas o resultado pode assumir uma lógica diferente da desejada – o filme desenvolve vida própria, sua particularidade como obra artística.


Algo dessa ordem aconteceu ao longa-metragem Por trás da linha de escudos (2023), de Marcelo Pedroso, que aborda as questões de segurança pública no Brasil, mostrando as ambiguidades da vida militar e assumindo uma postura crítica em relação aos atos realizados por meio dos batalhões de choque pernambucanos. A construção narrativa do documentário se desenvolve em meio à contraposição de pensamentos dos militares e de

Pedroso, que além de diretor do documentário é ativista de esquerda.


Trecho do Documentário Por Trás da Linha de Escudos


A premissa da obra é trazer o Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco e os manifestantes, especialmente os do Movimento Ocupe Estelita, criado em 2012, em um cenário de enfrentamento mútuo. O filme apresenta os conflitos entre os manifestantes, que defendem a não destruição do Cais José Estelita, marco cultural e histórico de Recife, e o Batalhão de Choque que intercede pela decisão que beneficia o Consórcio Novo Recife, composto por grandes empresas imobiliárias, e que criou o Projeto Novo Recife, uma ação

que visa a construção de prédios comerciais e residenciais no local.


Autor dos filmes Pacific (2009) e Brasil S/A (2014), Pedroso realizou Por trás da linha de escudos seguindo uma abordagem expositiva e participativa; os planos alternam entre cidadãos ativistas na defesa de seus objetivos e policiais se preparando para o combate armado nas ruas. Pedroso atua não somente como observador, mas como personagem em

ambas as realidades, conhecendo e entendendo o funcionamento da dinâmica em cada um dos espaços. Apesar de seu posicionamento político claramente definido, o realizador se dispõe a acompanhar e experienciar a rotina dos policiais com o objetivo de conhecê-los para além do pequeno visor presente em seus escudos. Os primeiros contatos entre os militares e a equipe se dão de forma lenta e gradual, na tentativa de conquistar a confiança dos oficiais e soldados. Entretanto, logo é percebido que existem muros comunicacionais entre soldados e civis e, mesmo ao retirarem o escudo policial, a armadura interna segue intacta e intransponível, pois os policiais parecem não conseguir ultrapassar os limites da missão e dever dos quais foram incumbidos.


Trecho do Documentário Por Trás da Linha de Escudos


A desumanização do indivíduo e a transformação do homem em um soldado, são um dos principais questionamentos do longa. É possível extrair algo de uma das entrevistas que nos intriga e faz pensar sobre o que a função de um policial exige e o que ele precisa, na maioria dos casos, deixar de lado ao vestir a farda. Ao detalhar seu processo de treinamento para o Batalhão de Choque, a soldado Talita revela que durante essa transição, é preciso que o policial molde a si mesmo para estar em conciliação ao que o BPChoque exige. Isso implica

pensar na possibilidade de uma inflexibilidade e rigidez serem características que devem estar ativas nos militares na totalidade do tempo, mesmo fora de combate direto.


Na tentativa de compreender como a rigidez militar se desenvolve, Pedroso e sua equipe passam a participar dos treinamentos e das operações junto aos soldados; durante as práticas, os policiais expõem a si mesmos à asfixia e até ao vômito, provocados por inalação de gás lacrimogêneo. Pois, durante uma ação de combate, o policial ataca com o gás não só o “inimigo”, mas também a si, uma punição mútua. Nesse sentido, o longa acaba por realizar uma crítica ao sistema de formação dos militares e à lógica de separação do exército que acaba desumanizando o homem para que ele não se reconheça em seu oponente, tornando o brasileiro inimigo dele mesmo.


A doutrinação militar utilizada para separar os indivíduos é dura e fere não apenas fora das tropas e bases militares, mas também dentro dela. Ao sentir na pele cada treinamento, Pedroso reflete e considera que, ao ser submetido a um treinamento de longo prazo, talvez até ele fosse transformado em soldado. Muito mais do que evidenciar a rigidez no processo de transição do indivíduo em um soldado, Por trás da linha de escudos resgata o pensamento de emergência para a possibilidade do diálogo entre grupos antagônicos, com

cenas e falas que instigam o debate público. O diálogo é a grande arte e riqueza social, construído continuamente entre indivíduos através do exercício de ouvir e compreender o lugar do outro, para caminhar coletivamente em direção à urgente transformação social.

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