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Ruminante Sem Rumo

Atualizado: 26 de out. de 2022

Crítica por Leandro Ferreira


Trecho do filme Animal Político

Em tempos inoportunos, a cronologia dos fatos nos antecipa a ansiedade que recai sobre as datas icônicas; é dentre os incômodos e ânsias insaciáveis que retomam-se as narrativas do interior. Em Animal Político, a impossibilidade de escapar das inquietações localizadas no incontrolável futuro tensionam as estruturas do ser e proporcionam uma imersão nas vicissitudes compositoras de suas urgências. A partir do recorte de uma personagem atípica, o diretor Tião permite ao público a identificação com o anômalo, cuja manifestação se desdobra ao animal: por intermédio da vaca que vaga pelas trincheiras do pensar em vagarosos passos, somos transportados para uma intervenção de realismo mágico no tédio pujante das banalidades da vida.


Representante da natureza bucólica, reside nesse bicho uma procura infinda, adormecida, por sua própria natureza. Embora a conjunção que resguarda os entrelaces entre a dimensão que tangencia os anseios instintivos mais primários, o desejo pelo contato com as potências do eu se desdobram por intermédio da figura do bovino de potências domesticadas. É por e através dessa figura que nos deparamos com questões tão próprias, enquanto partícipes da condição de feras domadas, amansadas pela rotina irremediável entre afazeres metódicos e diversões mecânicas.


O solitário trajeto percorre por um caminho construído tão somente pelas próprias pegadas já traçadas pelos cascos dessa eremita, a circularidade da rotina ordinária se remonta mesmo na peregrinação. O aspecto cíclico dessa odisseia em busca de sentido e significado para além do ócio das efemeridades se remonta enquanto possibilidade de ressignificação dos caminhos percorridos, é entre o flanar desatento e a fluidez dos devaneios que percorremos o íntimo dessas questões cujas reflexões promovem a identificação instantânea.



Trecho do filme Animal Político

Perpassando outra esfera, nos deparamos com A pequena caucasiana, uma jovem mulher humana, herdeira da fortuna decadente dos engenhos de cana-de-açúcar, essa personagem encontra refúgio ao longe das ilhas de calor presentes nos grandes centros urbanos, disposta em sua própria ilha de solipsismo, rodeada somente por água salgada. Cerceada pelas estruturas de seus castelos imaginários e as ruínas reais de um sistema decadente de manutenção do lucro proveniente dos espólios do escravagismo, essa emblemática personagem carrega consigo a convenção pela ausência das subjetividades dos sujeitos, expressa mediante seu encontro com as normas objetivas da ABNT, redutoras da experiência do indivíduo ao que pode ser classificado em suas diretrizes.


Entre similaridades e dessemelhanças prostradas por intermédio dessas misteriosas personagens que se desvelam em confluência com seus isolamentos, se cria uma lacuna, seriam estas antagônicas ou complementares? As provocações trazidas pelo filme contrastam e aproximam suas distinções, deixando ao público o exercício do senso crítico para diferenciar tais criaturas. As incertezas compartilhadas entre quadrúpedes e bípedes são catalisadas por uma estrutura narrativa ambivalente, cujo caráter aproxima e repele esses mamíferos e suas particularidades expressas entre os coeficientes racionais e instintivos do pensar.

Ao final da jornada de nossa protagonista, é possível observar o flerte com as teorias evolucionistas, expresso mediante a figura do monolito transportado da obra de Stanley Kubrick, ressignificado enquanto objeto de contemplação, e não um essencial potencializador de mudança. Esse artefato externo se demarca no espaço que atravessa a formação identitária de nossa personagem, tendo em vista que a transformação imanente ao percurso da vaca integra um processo de emanação de suas possibilidades internas, advinda das capacidades do ego e de seu contexto. A exteriorização de suas particularidades fundamentais se manifesta através dos gestos de contentamento com a realidade objetiva, em um movimento de acolhimento de suas necessidades mais humanas e mundanas, nossa personagem trafega com duas pernas o caminho trilhado de volta à sociedade.


Trecho do filme Animal Político

A ficção de Animal Político versa diretamente com a ampla gama de sentimentos provenientes dos dias inescapáveis, expressos entre datas: as memoráveis, nos quais a iconoclasta se apresenta impensável, ou no denso cotidiano e sua repetição incessante. Na data que escrevo, nos aproximamos de uma efeméride: a lenta marcha ao segundo turno de uma eleição presidencial capaz de reconfigurar as noções penetrantes do cerne das angústias da população. Cercados pelo fluxo indomável das notícias catalisadoras da biografia da nossa barbárie, e o ecoar do berrante que direciona o gado, tal qual as trombetas anunciadoras do apocalipse. é necessário manter a firmeza dos passos constantes que nos encaminharam, outrora, às épocas de vacas gordas. Na condição de animais políticos, devemos rumar contra os avanços dos sujeitos cujos objetivos prezam pelo abate de nossas pluralidades.



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