Em “O Voo do Viajante Alado”, a Spia resgata o relato de Paulo Rafael para o livro "As Aventuras do Baile Perfumado: 20 anos depois".
"Eu tinha feito apenas coisas bem esporádicas para cinema. Eu tinha feito a trilha de um curta para Lírio Ferreira, um curta bem experimental, que até ganhou um prêmio de melhor música num festival da Bahia. Também tinha feito a música e a trilha incidental de Pátria Amada, de Tizuka Yamazaki. Como na trilha estavam Alceu Valença e Carlos Fernando, com quem eu tinha muita intimidade, acabei assumindo.
Cerca de um ano antes das filmagens do Baile Perfumado, eu estava me mudando de Olinda, voltando para o Rio. Foi quando Geraldinho Magalhães, que estava cuidando da produção musical do filme, me convidou para assumir a direção musical. Na verdade, foi nesse momento que eu fui tomando pé da situação. Havia muitos comentários, todos os meus conhecidos do Recife já estavam curtindo a informação de que havia um longa sendo rodado. Já existiam muitas lendas e histórias: “Olha, eles estão filmando, Lírio e Paulo Caldas…”. De vez em quando, chegava alguém vindo das filmagens e começava a comentar que estava rolando isso ou aquilo. E ficava todo mundo querendo participar de alguma forma daquele projeto.
Mas, no meu caso, foi muito por insistência de Geraldinho. Quando Geraldinho me convidou é que comecei a me informar melhor. Fiquei mais perto. Um dia, me passaram uma versão do roteiro, mas chegava alguém para me alertar: “Olha, nem leia isso que mudou tudo…” De todo modo, li uma parte do roteiro para entender como era a história. Posteriormente, Marcelo Pinheiro me ajudou muito a entender o que estava por trás daquela história.
A bem da verdade, eu diria que quando eu entrei no processo foi na função de um motorista que dá uma freada para arrumar o caminhão. Porque todo mundo estava ou tinha passado pelo estúdio do Conservatório Pernambucano de Música para gravar. Já tinha material gravado de Chico Science, Lúcio Maia, Siba (que era o Mestre Ambrósio), Fred Zero Quatro, Stela Campos… ou seja: todo mundo que estava envolvido com o que se fazia naquele momento no Recife em termos musicais. Eu sabia do trabalho de todos eles, mas na verdade não conhecia todos em profundidade, a não ser a Nação Zumbi e Siba. E a primeira impressão que eu tive quando me entregaram os rolos - porque foi tudo gravado em fita de rolo, ainda em 16 canais -, chamei um técnico de som que eu conhecia para vir ao estúdio do Conservatório. E o cara me alertou: “Olha, se prepare porque é um quebra-cabeça, Você vai ter que montar um quebra-cabeça gigante”.
Comecei a ouvir as gravações, tinha muita coisa. Porque no início, antes de me chamarem, as coisas funcionaram assim: alguém convidava os músicos, passava um briefing, e eles entravam no estúdio e passavam o dia tocando, fazendo música. Disso resultaram horas e horas de gravação. Todo o material tinha uma certa orientação de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, e cerca de 90% das músicas já estavam gravadas. Embora quase tudo estivesse feito, sempre faltava um pedaço. Era tudo esboço. Um esboço que exigia que a gente voltasse para eles. Eram milhões de esboços, e comecei a filtrar, a filtrar.
A partir desse momento, defini um pouco sobre o que iria ou não entrar. Fazia uma seleção e levava para os diretores, mostrava, conversava. E eles já achavam que estava resolvido:
“Está tudo pronto?”. E eu dizia: “Não, não está pronto!”. Seria preciso regravar para tudo ficar realmente pronto, bem acabado. E a produção enlouquecia: “Ai, meu Deus do céu, tem mesmo que refazer?” Algumas coisas, portanto, estavam para terminar, concluir, resolver, editar no estúdio… Um bocado de coisa que precisava regravar. Nesse momento eu já estava morando no Rio. Então eu comecei a perceber que havia nessa etapa uma resistência incrível, porque todo mundo já achava que aquilo que tinha gravado estava bom, concluído.
O próprio Siba, que tinha acabado de gravar o disco do Mestre Ambrósio, dizia que não estava mais com cabeça: “Porra, eu vou ter que gravar aquilo tudinho de novo?” Eu insistia: “E você vai deixar desse jeito, cara? A ideia está fantástica, mas tem que dar um acabamento”. Aos pouquinhos, comecei a convencer Siba. Depois dele foi mais fácil convencer Lúcio Maia, depois convencer Chico Science, Fred Zero Quatro, todos os outros. Todo mundo ajeitando as gravações. Eu pegava aqueles borrões, aqueles esboços e saia gravando por cima. Então essa foi a primeira etapa.
A segunda etapa eu já trouxe para o Rio. Havia boas ideias porque como o projeto era fazer um disco - nem era DVD ainda - como o material era pra fazer parte de um disco uniforme, chamei o Dj Suba, que tinha uma pegada mais forte de música eletrônica. E decidi que ele também iria entrar na trilha do filme. Porque eu comecei a observar que tinha muita coisa que precisaria recombinar. Eu tinha uma banda chamada Eletro Fluminas, com o tecladista Márcio Lomiranda. Eu me propus, então, participar da trilha não apenas na direção musical. Pedi mesmo: “Deixa eu colocar umas músicas minhas aqui também”. Eram mais músicas que poderíamos chamar de músicas de fundo. Não eram os temas principais, que eram sempre cantados. As minhas músicas eram de apoio, que fomos fazendo puxando para um lado mais eletrônico, que serviria para complementar todo o resto. Por fim, eu mixei.
Lírio e Paulo estavam editando em Botafogo, bem perto de onde ficava a minha casa. E comecei a frequentar. Era uma energia fantástica, os caras estavam curtindo pra caramba. Foi a primeira vez que eu vi as imagens e o som que vinha do set. Porque até então era tudo na imaginação. Nesse momento, Lírio e Paulo já sabiam exatamente onde colocar as músicas. Eles sabiam da importância que teria a trilha para conduzir a narrativa. Quando eu vi o filme pronto foi ainda surpreendente. Eu pensava: “Olha, aquela música entrou nessa sequência”. Mas quando eu vi a cena de Lampião naquela pedra, fiquei arrepiado. Aliás, eu fico arrepiado até hoje. Eu senti um impacto enorme. Tanto que pensei na hora: “Puta que pariu, isso aí vai mudar um monte de coisas” Eu senti na hora que já era uma linguagem nova do cinema. E eu digo: “Negão deu um passo”.
Sangue de Bairro (Chico Science e Ortinho)
Besouro/ Moderno/ Ezequiel/ Candeeiro/
Serra Preta/ Labareda/ Azulão/ Mamoeiro/
Quinaquina/ Bananeira/ Sabonete/
Catingueira/ Limoeiro/ Lamparina/ Mergulhão/ Corisco/
Voltaseca/ Jararaca/ Cajarana/ Viriato
Gitirana/ Voltabrava/ Meia Noite/ Zabelê
Quando degolaram minha cabeça,
passei mais de dois minutos
vendo meu corpo tremer
E não sabia o que fazer,
morrer, viver, morrer, viver
Nesse universo que é o filme, eu me considero uma particulazinha. Mas os diretores não: eles deram um tiro lá na frente. Fiquei muito emocionado. Aquelas imagens ficaram perpetuadas, porque não eram imagens antigas ou novas. Ficou uma coisa atemporal. Fiquei muito feliz por ter participado do Baile Perfumado. Eu acho que o filme foi um trabalho fundamental para o cinema, para a música pernambucana, para que todo mundo pudesse se sentir valorizado. Eu acho que o Baile foi o que deu a alavancada para toda essa coisa que veio depois no cinema em Pernambuco. Eu fiquei só felicidade."
Gravação da trilha sonora do filme Baile Perfumado no Conservatório Pernambucano de Música. 1- Chico Science - Foto: Fred Jordão; 2- Fred 04 - Foto: Fred Jordão.
Relato extraído do livro
"A Aventura do Baile Perfumado: 20 anos depois".
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