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O Mal Estar na Taberna Minhota

O indivíduo liquidado em EX Mágico, curta Olimpio Costa e Mauricio Nunes.

Texto por Lucas dos Santos Silva.


O ex Mágico é um personagem que caminha pesadamente, parece carregar um peso nas costas arqueadas; arfando, ele passa apressado pelas ruas e vielas de uma cidade vazia, numa paisagem opressiva de casarões abandonados. Parece fugir de alguma coisa misteriosa enquanto sente cansado o peso angustiante do mundo que o cerca.


A animação de Olímpio Costa e Mauricio Nunes é uma adaptação do conto homônimo de Murilo Rubião, que narra a trajetória de um homem que possui um dom compulsório de fazer mágica. O personagem é constantemente atormentado por truques de mágica que brotam ao seu redor contra a sua vontade. Depois de algum tempo trabalhando no circo ele começa a tentar o suicídio mas sem obter sucesso, pois a mágica acaba por salva-lo da morte em todas as ocasiões. Frustrado ele decide se tornar funcionário público após ouvir de um estranho que isso seria como “suicidar-se lentamente”.


Durante os 11 minutos de um thriller com elementos surrealistas, que mistura influências de David Lynch com animação americana dos anos 90, a adaptação narra o dia a dia do Ex Mágico na sua rotina monótona de funcionário público em que um homem de meia idade confronta as dificuldades de lidar com as frustrações e amarguras de sua vida. Os cenários hachurados e realistas, com perspectivas fortes e definidas, de casarões e ruas antigas, desenhados por Ricardo Cavani, dão à produção um ar angustiante, ao mesmo tempo que a animação e os personagens caricaturescos carregam o filme com uma natureza onírica. Essa unidade de polarizações nos transportam para dentro do delírio do protagonista.


”todo homem quando atinge certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche de tédio e de amargura, pois desde criança ele aprende a lidar com os dissabores da vida em um processo lento e gradativo, isso não aconteceu comigo” EX MÁGICO. Direção: Olímpio Costa e Maurício Nunes.

Esse processo de conflito constante entre o eu e o mundo exterior, que se apresenta como uma realidade opressora, é comum na literatura de ficção. Autores como Franz Kafka e o próprio Murilo Rubião fizeram desse dilema sua matéria prima da criação, mas além das artes, um dos campos que mais se debruçou sobre o tema foi a psicanálise.


Em um dos seus textos mais conhecidos, O Mal Estar da Civilização, Sigmund Freud destaca esse confronto entre o eu e o mundo exterior como uma parte primordial da formação do indivíduo. Esse processo aparece na nossa vida já no nascimento. “O bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior, como fonte das sensações que lhe sobrevêm. Aprende a fazê-lo aos poucos, em resposta a estímulos diversos”(FREUD, 1930.pág.17), esses estímulos podem aparecer como estímulos de dor e de desprazer. Como uma forma de se proteger, em um princípio que o autor vai chamar de Princípio do Prazer, o indivíduo acaba separando tudo que pode se tornar fonte de experiências desagradáveis como sendo parte de um mundo exterior, distinto do eu. Nesse sentido o eu se torna o ente desejante e o mundo exterior, a realidade, uma barreira para a realização dessas vontades.


Na animação Ex Mágico o personagem surge como um ser pleno de desejo, que é ao mesmo tempo preenchido e atormentado por eles. Já no começo ele aparece fugindo de um perseguidor misterioso, em ruas vazias, e se refugia no seu aposento, onde é confrontado por uma miríade de animais selvagens espalhados pelo seu quarto. A magia surge na sua vida como um impulso que o controla, e é reprimido pelo seu entorno. Ao mesmo tempo, desejo e realidade aparecem de forma opressiva para o personagem. Isso porque em determinado nível ele não consegue separar o mundo exterior do seu próprio eu. Sendo assim, a sua realidade opressora se mistura com seus desejos e visse e versa.


“No circo, o palco me distanciava das pessoas. Hoje eu sou funcionário público e esse não é o meu desconsolo maior” EX MÁGICO. Direção: Olímpio Costa e Maurício Nunes.

Em seus devaneios a realidade é constantemente alterada, em uma visão subjetiva, vemos, através da sua ótica, o papel da sua mesa de trabalho ser preenchido magicamente por seios femininos voluptuosos, enquanto ele comenta sobre seu desejo pela sua vizinha de escritório. Ao mesmo tempo em que assistimos a sua mão se dissolver, somos entrecortados por uma montagem que reforça a monotonia através da repetição constante de cenas.


Um dos diretores da animação, Maurício Nunes, destaca a presença dessa ruptura entre o eu e o mundo exterior como um tema relevante tanto na sua adaptação como na obra original de Murilo Rubião, “Uma coisa do conto, que eu sempre fiz essa leitura, é ao fato dele nascer velho; eu dei por mim já velho num espelho de uma taberna. Ele não teve infância, não passou pelas vicissitudes da vida, isso pra mim é nitidamente um processo de ruptura com o racional, ele teve algum problema neurológico que é trazido para o mundo real”. Esse jogo entre realidade e fantasia como um aspecto do delirante foi algo que o diretor Maurício Nunes afirmou ter escolhido trabalhar em sua animação através de um roteiro de ambiguidades, quis dar ao EX Mágico essa natureza de constante incerteza.


Como espectador, não sabemos se o protagonista foi sequer um mágico, não temos a resposta concreta do que é real e do que não é, pois nem o personagem tem essas certezas. “Isso foi uma das coisas conscientes, eu não queria deixar claro que foi realidade, suscitar a possibilidade de ele sempre ter sido um funcionário público que entrou em crise, quis uma outra coisa, uma vida artística, mas foi tão reprimido a vida inteira que quando quis aflorar esse outro lado veio como um vulcão”.


Esse processo de repressão internalizada, Freud descreve como Mal Estar Civilizatório. Para o autor, a civilização é o que nos afasta da nossa natureza selvagem, é o conjunto de regras implícitas e explícitas que nos permite a convivência social, essas regras nos protege do desejo e das vontades do outro, mas também reprime e nos afasta das nossas próprias vontades.


O personagem que nos guia no curta é um sujeito que foi completamente dissolvido por esse Mal Estar Civilizatório, ele é tragado por esse mundo de regras que no filme é representado pela burocracia, no seu ofício de funcionário público. Com a mesma facilidade que as opressões sociais entram em seu eu, o seu desejo se mistura com o mundo a sua volta, gerando uma realidade delirante.


“Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia” EX MÁGICO. Direção: Olímpio Costa e Maurício Nunes.

Esse delírio patológico faz dele um homem sem forma, que tem o tempo todo sua aparência e seu corpo transfigurado, seja em animais ou em objetos e até figuras disformes.

“A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes.”

O realizador afirmou em entrevista que não tem familiaridade direta com os textos dos autores de psicanálise, mas que sempre refletiu sobre as relações dos desejos primordiais humanos através de observação e pelo conhecimento direto de outras obras e do seu próprio desejo como homem. Em sua entrevista, ele afirma que muitas das chaves interpretativas da psicanálise foram passadas de forma consciente, mas algumas delas foram inconscientes, como a referência ao desejo do peito materno, além de que a escolha desse tema mais subjetivo na sua obra vem da suas influências de formação no Recife.


O diretor do curta Maurício Nunes destacou que a personalidade do seu protagonista foi inspirada em pessoas que conhecia, que passaram por processos parecidos de repressão internalizada e acabaram perdendo seus limites nesse caminho. Além de se inspirar também em pessoas que sempre foram muito livres, fizeram tudo o que quiseram, já que para ele essa liberdade também sufoca, fazendo com que o sujeito se perca no próprio desejo, pois a vida não se resume só ao que o indivíduo deseja, é preciso também que haja um equilíbrio entre o desejo e a realidade.


Assista o filme na íntegra:


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