Samara Torres
O Agreste psicodélico em A Noite do Espantalho (1974)

De repente estamos pisando no chão quente de Brejo da Madre de Deus, observando por dentro o Teatro Nova Jerusalém. Depois de dois anos sem o maior espetáculo ao ar livre do mundo (devido a pandemia), no filme A Noite do Espantalho (1974) dirigido pela grande figura do MPB Sérgio Ricardo, temos a oportunidade de revisitar o local que também foi palco de tantas outras manifestações artísticas, como a desse filme.
Se fosse possível descrever este filme numa visão geral, diríamos que é um musical sobre um grupo de trabalhadores lutando pela sua sobrevivência em um Nordeste devastado pela seca e pelo sol “de dois canos”. Ao escrever isso, sinto como se deixasse o filme vago demais. A imagem produzida na mente pode representar um filme tradicional, com uma temática já recorrente no cinema brasileiro e especialmente, no Cinema Novo. O coronel que oprime, o capanga que executa, os trabalhadores ao sol e o vaqueiro salvador. Mas não é bem assim! A trama que gira em torno de Maria do Grotão, Zé do Cão e Zé do Tulão, está longe de ser um filme comum, que passou sem deixar rastros. Na leitura que faço do filme, considero que: (1) pode ser um musical brasileiro e pernambucano dos anos 70 (gênero pouco explorado na região) ou (2) pode ser um sonho febril de 1h22min.

Com um roteiro extremamente criativo e coeso com o que propõe, acordamos em um universo próprio e até então único. Existe uma relação entre a câmera, o personagem e o espectador, a famosa quebra da quarta parede que é rotineira em musicais. O filme apresenta isso de uma forma muito sucinta, ao transformar o espectador em cúmplice de tudo que vai acontecer nos próximos atos. Olhando diretamente para a câmera, o coronel relata seus planos malignos, mas, ainda assim estamos no escuro junto com os outros personagens, menos aquele que dá nome ao filme: O Espantalho. Interpretado por Alceu Valença, o personagem aparece nesse filme como uma grande imagem espiritual, quase que atuando no que hoje seria uma versão de si mesmo. Sua presença é divina, seja nos palcos na vida real ou sendo o personagem que nos guia e a sua manada de fiéis, os trabalhadores. Sua voz ecoa pelos quatro cantos do cenário.
“Sou cantador de Cajazeira
E vim cantar a minha gente
Gente que não foge do aço
Gente que não corre de macho
Nem de onça ou de mulher”
A Noite do Espantalho é uma grande mistura de vários elementos surrealistas, tradicionais, ficcionais e poéticos. Um grande cordel transformado em obra cinematográfica. As músicas, escritas pelo diretor Sérgio Ricardo, dão uma sensação de pertencimento, seja dos personagens que descrevem as situações em versos melódicos ou da imersão de quem assiste nesse universo caótico. A psicodelia apresentada no filme se intensifica com as rimas acompanhadas da melodia pesada. Os toques musicais profundos abrem caminho para os personagens comporem suas dores em um timbre forte, transformando as falas em versos. O trabalho da música no filme é bem incorporado ao saber quais instrumentos devem ser usados de acordo com a intensidade da cena. Indo da guitarra ao pandeiro, a história é construída por esse meio narrativo.
“Meu avô ensinou ao meu pai, e meu pai me repetiu: sem um não tem o dois, sem o dois não tem o três, sem o três não tem o quatro, nem o cinco, nem o seis. Se no final deu errado, se faz a conta outra vez.”

Na tentativa da linearidade temporal dos fatos, procissões com personagens aleatórios como uma bailarina saltitante no meio dos trabalhadores; os bastidores de uma revolução, com o diretor da cena vestido com um terno vermelho e palhas montadas que se assemelham a foice a ao martelo da União Soviética; e até mesmo um ser dragão com asas, chifres, presas, pele de crocodilo e peitos de fora, nos faz imaginar diversas interpretações para o que Sérgio Ricardo, Maurice Capovilla, Jean-Claude Bernadet e Nilson Barbosa, todos roteiristas, quiseram apresentar. Sejam essas interpretações literárias, poéticas ou até mesmo, religiosas.
Podemos nos apegar à possibilidade que o filme A Noite do Espantalho pode ser uma grande alegoria religiosa, levando em conta o local de gravação, o tema da fé como forma de luta e resistência e o poder da grande divindade que o personagem de Alceu exibe. Onipresente, onisciente e onipotente, não importa onde o mal estiver, o Espantalho estará lá transformando seus versos em respostas espirituais. Alceu interpretando o Espantalho, com sua juventude aflorada exibindo seus cabelos longos, segurando um cajado que antes fazia parte da cruz na qual estava preso, sofre junto com o trabalhador que sangra nas mãos do Coronel e de Zé do Cão, um tipo de cangaceiro do mal que é contratado pelo Coronel para expulsar o povo das suas terras. Uma imagem crística pode ser vista no Espantalho. Já a figura do dragão aparece sendo aclamada pelos dois responsáveis por amedrontar àqueles do bem, deixando a interpretação livre para que seja a cabeça maligna. Suas características físicas (chifre, presas, olhos negros) podem ser relacionadas a um bode, esse que é representado como o Diabo em muitas adaptações. Ou Maria do Grotão, uma mulher tentada a sedução dos dois Zé. São vários elementos que juntos resultam em uma rica discussão sobre a grandiosidade dessa obra.
A Noite do Espantalho é inegavelmente um marco na nossa cultura. Foi escolhido para representar o Brasil no Oscar de 1975, mas não conseguiu a indicação. Ainda assim, ganhou diversos prêmios de melhor ator, melhor composição, melhor fotografia e até mesmo o prêmio especial dos festivais de Cannes e de Nova Iorque. Sua divindade artística não ficou apenas dentro da ficção. O fenômeno sensorial que o longa transmitiu foi além, graças ao trabalho espetacular de todos os artistas envolvidos nessa obra. A perfeição musical e surrealista que vai da montagem até a direção de arte mostra como o cinema feito em Pernambuco consegue ser cada vez mais diverso e surpreendente. É uma obra que deveria se tornar um pecado caso deixada de lado.
Quando o corpo vai prum lado
e vai pro outro o coração
cante que só passarinho
jogue o corpo na canção
que o coração vê caminho
e os pés se movem no chão
Resenha crítica escrita por Samara Torres