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  • Foto do escritorRevista Spia

Fabriquetas de jeans e sonhos

A rememoração das lembranças de infância do diretor Marcelo Gomes é contraposta à atualidade do espaço e suas necessidades em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”. É possível avistar uma cidade que parte da ruralidade em direção a industrialização improvisada, um aceno às grandes produções e fábricas que se guliverizam em quintais e garagens, e remetem, de maneira inconsciente, às dimensões da capital do jeans.


O processo pelo qual a agricultura e pecuária em Toritama dão vazão à formação de uma indústria é explorado a partir da voz de seus habitantes, intimamente relacionados a esse fenômeno. Essa massa de trabalhadores, que abandonaram o silêncio que era interrompido tão somente pelo barulho dos animais e das ferramentas em contato com o solo em troca do zumbido incessante das máquinas de costura, tem seus anseios expostos a partir dos discursos que se misturam ao som de maquinários de trabalho e sobrevivência. É nesse ambiente caótico de intercessão entre sons estridentes, que cessam somente em momentos de descanso, que se ambienta a narrativa traçada no documentário.


A ilusão da autonomia trazida pelas máquinas, que em um primeiro momento substituem animais, e que podem, eventualmente, substituir as pessoas inseridas nessa cadeia produtiva, é o principal fator de reforço às experiências dos trabalhadores da cidade. Explorados na produção de jeans, essas pessoas, sem perspectiva de crescimento fora desse eixo, se empoderam pelo lucro trazido do trabalho contínuo, rotineiro, que reincide em seus cotidianos os movimentos de repetição traçados pelas mãos que costuram pequenas partes integrantes do jeans. Um bolso, uma braguilha e um dia de vida se tecem da mesma maneira: repetição com maior velocidade, seja para que a produção gere mais lucro ou para que a vida passe mais rápido até o seu próximo momento de encanto.


O encanto promovido pelo lazer não pode ser encontrado nessa cidade, o ofício é a força motriz desse espaço. Não há restaurantes, bares, piscinas, a vivência é contida dentro das casas, seja nos momentos de trabalho, descanso ou lazer. O lar passa a comportar todas as possibilidades dessas existências.

O êxtase que irrompe a existência estática dessa população é encontrado no carnaval, o hedonismo desse feriado é a oportunidade de extravasar as pressões do cotidiano. Esse movimento de desprendimento ao trabalho se manifesta de maneiras múltiplas, há quem venda seus eletrodomésticos, meios de transportes ou faça empréstimos para aproveitar essa data. O que pode caracterizar um protesto à exploração sofrida diariamente, além de renovar os ares daquela cidade, é a preparação que abre alas para as tentativas de recuperar a vida não vivida em 361 dias do calendário, que são possibilitadas até a data limite da quarta-feira de cinzas.


O refúgio para distante do barulho das máquinas de costura dá espaço ao ruído branco da cor da espuma das ondas do mar que se dissolvem na areia. Na praia o único som metálico é oriundo das fanfarras que transitam pela cidade. Dentre as cenas filmadas nesse segmento do filme, se destacam as que relatam o descanso em seu silêncio. Cortadas apenas pelos diálogos, ou suas tentativas, que estão banhadas em metalinguagem, falam sobre o próprio descanso, o balançar da rede e o simples fato de deitar-se é assunto de suma importância.



O retorno para Toritama ao final das curtas férias é marcado por uma chuva costumeira, se em outras ocasiões esse momento representava o início da temporada mais propícia para as plantações, agora sua simbologia não ultrapassa a de um fato vazio. Não existe tempo conveniente para o jeans, e por mais que as pessoas inseridas nesse ciclo de fabricação sintam-se donas de suas forças de trabalho e também de seus tempos, naturalmente esse aspecto se padroniza: dormir 6 horas diárias e trabalhar o resto do dia com pequenas pausas destinadas às suas necessidades mais básicas, que se puderem, devem ser realizadas na mesma cadeira na qual passam a maior parte de suas horas.



“Estou me guardando para quando o carnaval chegar” intui a possibilidade de aproximação das maneiras de exploração de um povo em prol da manutenção de um sistema econômico e nos aproxima da realidade do polo têxtil do agreste em seus aspectos menos aprazíveis. Ele investiga as maneiras como um tecido de cor azul, composto de trama e urdume, se impõe sobre as tramas das vidas de quem o confecciona.

Ao final das 1h25 de filme o silêncio da minha sala, impossível de existir em um dia comum de Toritama, em contraste à tela preta, me traz o questionamento: quantas peças de roupa foram produzidas durante esse curto espaço de tempo?


A obra de Marcelo Gomes está disponível na Netflix.

Ficha técnica: Direção e Roteiro: Marcelo Gomes Produtoras: Carnaval Filmes, Rec Produtores Associados, Misti Filmes. Direção de Fotografia: Pedro Andrade Produtores: João Vieira Jr., Nara Aragão Coprodutores: Chico Ribeiro, Ofir Figuereido, Ernesto Soto, Marcelo Gomes Produção executiva: João Vieira Jr., Ernesto Soto Montagem: Karen Harley Som: Pedro Moreira, João Lucas, Lucas Caminha Música: O Grivo Direção de Produção: Karina Nobre, Luna Gomides Assistência de Montagem: Gustavo Campos Personagens: Leonardo, Francielly, Canário, Velho do Ouro


Texto por: Leandro (colaborador da SPIA)


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