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Devotos da boa-fé: a fé anarquista!

Atualizado: 23 de dez. de 2021

Relato por Marcus ASBarr.


Foi da tenacidade de Nado, memorável e emblemático vocalista da banda crossover¹ Realidade Encoberta, elo forte e inspirador, que me fez mergulhar na ação direta: passei de público a ativista cultural. Com a entrega de panfletos para o III Encontro Anti-Nuclear², ele criou um momento histórico: possibilitou o conhecer do movimento punk em flerte com a ideologia Anarquista.


Marcus ASBarr em apresentação no projeto IRMANDADE, ocorrido em uma exposição promovida pelo MaOs Contatos. Foto: Cannibal.

Ver o mundo da angulação do “faça você mesmo” liberta. Inevitavelmente outro enlace ocorreria, pois a trajetória do atual Devotos iniciou neste mesmo momento, naquele mesmo palco e ainda como Devotos do Ódio. Na noite nublada de agosto, fim dos anos 1980, o então “Devotos do Ódio” foi o descortinar da potencialidade do punk, o despertar para novas formas de expressar ideias, de interagir com a sociedade.


Não eram contestações vazias, mas algo vívido, sentido, absoluto comprometimento com a conscientização social. Até os cacofônicos sons da aparelhagem precária nos shows suburbanos — característica do punk — não comprometiam e sim ressaltavam o talento e o vigor, que emanava da palavra, e a sinceridade das palavras se verteria em ações para o “transformar do mundo à sua volta”.


Respaldo minha narrativa, após mais de três décadas, indicando leitura de duas letras de momentos extremos do Devotos: “Luz da Salvação” e “Incrédulo”. O essencial fica e a palavra liberta!


Mas o estreitamento da relação com o Devotos do Ódio seguiu a passos largos. E o primeiro contato direto com a banda não tardaria, pouco depois daquele impacto inicial em meu primeiro show de punk rock — no qual levei um tombo no meio da roda de pogo e saí ileso comprovando que as pessoas estavam ali não para se agredirem, mas para extravasar energia — estive em outros shows, nos quais fiz questão de dar ênfase à banda para Osman Frazão, que me apresentou a cena underground local e por ser mais headbanger demais na época, não esteve III Encontro Anti-Nuclear. Ele é meu primo e juntos, pouco mais de um ano depois, adentraríamos de vez no ativismo cultural que já praticávamos, só que agora com uma chancela: MaOs Contatos, um organismo de intensivo apoio ao cenário... que de duo não tardaria a se tonar solo. Mantive a marca até meados dos anos 1990.


Cartaz da primeira ação do MaOs Contatos

Ambos já fãs confessos do Devotos do Ódio, motivados por nossa primeira ação, ter a banda na próxima investida era uma meta. Seria a sequência para o Nordeste Thrash, que se

desdobrou em outra ação na qual a banda também estaria em palco: o Não Papai Noel. Ambas foram frustradas.


Imagem reprodução do livro Música Para O Povo Que Não Ouve, p.12. Arte de Marcus ASbarr sobre cartaz assinado por Osman Frazão.

Na memória ficou marcado o dia em que seguimos ao Alto José do Pinho, sem conhecer nenhum integrante da banda, e ao chegarmos defronte ao endereço chegou também a apreensão e um impasse: se chamávamos Cannibal ou não. Então batemos palmas à moda antiga, não sabíamos a relação da família com a participação dele no movimento punk, mas vivenciávamos a situação. Para nossa surpresa, a irmã dele atendeu e de imediato soltou o grito: “CANNIBAL!”.


E logo em seguida, o momento que selaria esta relação ocorreria imediatamente após o fracasso da ação Não Papai Noel, pois no dia seguinte já subíamos o Alto José do Pinho novamente, e desta vez esperando ser trucidados. Parecia que a carga de responsabilidade pelo ocorrido pesava toneladas. Encontramos Cannibal —e uma turma que em breve seriam os novos nomes da cena musical do Alto José do Pinho— na primeira esquina da ladeira de acesso. Uma apreensão ainda maior que num instante se dissipou com uma acolhida onde o entendimento e total empatia com a proposta nos colocariam ladeados seguindo no mesmo sentido.


Abertura do primeiro videoclipe do Devotos do Ódio. Produção MaOs Contatos, que foi exibido (um trecho) no programa Fúria Metal (MTV Brasil) pelo VJ Gastão.

Logo no início passamos de fãs na plateia a vivenciar de perto os primórdios da banda. Estávamos em ensaios, em shows, e buscando todo o tempo dar o apoio necessário na difusão. Uma estratégia era ter matérias na mídia de todo e qualquer show. Para tal, produzíamos fotos e enviávamos releases para os principais órgãos de comunicação, com bons resultados em jornais impressos.


Matéria Recife Rock Show na The Surf Press Rock Ano II, N° 6, Outubro/1993. Cannibal se apresenta com uma camisa do projeto Irmandade pintada por Marcus ASBarr.
Repertório escrito por Cannibal para o show no Pocoloco Olinda, 7 de Maio de 1994.

Mas parece que as ações do MaOs Contatos estavam fadadas a não darem certo com o Devotos do Ódio, pois ainda uma outra ficou registrada como o pior show na memória da banda: o Nordeste Thrashcore, este realizado em Campina Grande, Paraíba.


Daí por diante eu nem sabia mais que papel desempenhava na história: eu me tornei amigo, fã, mas não produtor — embora em alguns momentos este papel coubesse a mim por necessidade de uma representatividade. Orientava apenas, não tomava decisões. Assim, sugeri rejeitarem o primeiro contrato proposto para banda por um selo local. Algo complicado, pois podem pensar: “Loucura! A banda não tinha nada naquele momento”. Mas o que se desenhava era algo grande e condizente com o seu talento. Estava já em evidência total e isso foi se avolumando de uma forma que não se poderia mais sufocar. A minha presença constante ao lado da banda ocasionaria me confundirem até como mais um integrante em alguns momentos, embora só uma vez eu estive no palco e o registro é histórico para mim.


Show no clube de futebol Prazeirinho em Jaboatão dos Guararapes. Acervo: Marcus ASBarr.

Posso assegurar que ainda hoje o talento que me levou a apostar alto — e em certos momentos até me deixar um tanto preocupado com a demora de acontecer — continua a me encantar. Revivi alguns desses momentos como editor do livro Música Para o Povo Que Não Ouve, no qual eu assino o singelo capítulo preambular: “Memórias de um devoto”. O livro está no catálogo da Cepe Editora, e foi lançado em 2018. No processo de editoração, a definição dada ao projeto editorial englobou momentos inéditos da banda, registros históricos tanto do meu acervo quanto do próprio Cannibal, e quando recebi o material ainda bruto do último álbum — trilha sonora enquanto desenvolvia a parte de criação artística para composição do livro — estava tudo lá: in natura, mesmo após tantos anos. E algo que me proporciona um imenso orgulho... de fã.


Notas do autor:

¹ Crossover é estilo musical, no caso a sonoridade do Realidade Encoberta, em sua formação original, era a junção do punk hardcore e o heavy-metal.

² III Encontro Anti-Nuclear é o nome da histórica movimentação que recebeu três edições reunindo artistas e ativistas de várias partes do país, grafada originalmente como na época.


Sobre Marcus ASBarr:

@marcusasbarr (BioDiverCidade Produções) é Ativista cultural oriundo do movimento punk. Produtor Cultural, Compositor e Músico Experimental. Atuante no cenário cultural de música, audiovisual e editorial (projetos gráficos e editoriais; Direção de Arte; Designer; Ilustração; Diagramação; Editor de livro e revistas), com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Assina o projeto gráfico e capa da segunda edição do livro "Pesado" (Wilfred Gadelha), e é Editor, prefaciador e capista do livro "Música para o povo que não ouve" (Cannibal), além de ser personagem em ambos. Criador Visual filiado a AUTVIS.


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