Revista Spia
Da infância ao lado de minha avó e da máquina de costura à luta por uma indústria da moda consciente
Um relato sobre a produção de “Pega-se Facção”, curta de Thaís Braga.
Por Thaís Braga*

Durante a minha infância brincar com agulhas, tecidos e linhas fazia parte da rotina. Passava as tardes sentada no chão, ao lado de vovó Zeza, enquanto ela costurava, ouvindo o barulho do motor da velha máquina de costura de ferro. À medida que o tempo passou meu interesse pela costura foi aumentando, passei a querer entender melhor como funcionava aquela máquina e como vovó conseguia fazer de um pedaço de pano a roupa que me vestia.
Na minha família o curso técnico profissionalizante era muito importante, foi a partir dele que vovô Cidinho aprendeu sua profissão de torneiro mecânico e sustentou seus cinco filhos. Eu também quis fazer o curso técnico e ter uma profissão. Escolhi cursar Produção de Moda no Senai. Quando cheguei na fase de tentar vestibular, não tive dúvidas, queria continuar na profissão, quis ir para Caruaru estudar no Campus interiorizado do Agreste.

Com o passar dos anos fui vivenciando a cidade e acredito que ela foi me transformando. Andava pelas ruas e sempre escutava o barulho das máquinas de costura, de dia e de noite, sem parar. Não era aquele barulho de máquina que vinha de uma memória afetiva, era um motor diferente, apressado e contínuo. Ouvi que havia uma cidade lá perto, onde o rio muda de cor acompanhando a moda. Conheci a tal "costura de facção". A maioria dos meus amigos caruaruenses tinham família que trabalhava na feira. Alguns cresceram tirando pelo e ajudando as mães na costura.
A segunda indústria que mais movimenta a economia no mundo é sustentada por um modelo de produção apoiado na precarização do trabalho, que além de não trazer bem-estar e segurança, ainda adoece. São gerações e gerações vivendo no ritmo frenético do fast fashion (moda rápida) e da feira. Praticamente toda semana uma nova coleção, um novo modelo. Mas é por produção que o trabalho é pago, então, quanto mais você produz, mais você ganha. Queria entender melhor como tudo aquilo funcionava. Foi no Grupo de Estudos Sextas de Barro que comecei a estudar alienação, terceirização, precarização, todas numa perspectiva de classe. Adentrei de cabeça no movimento estudantil, na luta urbana, frequentava reuniões com movimentos sociais da cidade e do campo, partidos e sindicatos.
Após assistir “The True Cost” (2015), documentário que explora as relações de trabalho e os impactos causados pelo consumo exacerbado de produtos em sistema de fast fashion, me senti incomodada por perceber que, principalmente nas aulas de Moda, as pessoas comentavam sobre o assunto com um certo distanciamento. Quando bastava um olhar mais atento às ruas de Caruaru para perceber que não estávamos tão distantes daquela realidade.

No espaço acadêmico compreendi que estar em uma universidade era mais do que ocupar uma cadeira e assistir aula. As aulas de Moda foram dando lugar às aulas de Comunicação Social mais voltadas ao audiovisual. Integrando o Laboratório de Análise da Imagem do Agreste, o LAISA, tive a oportunidade de estudar cinema, inclusive, sendo pesquisadora Pibic, desenvolvendo pesquisas sobre documentário pernambucano sob orientação de Amanda Mansur.
Nos anos em Caruaru a minha aproximação com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi se desenvolvendo não só no campo da luta, mas também no afeto. Meu companheiro na época, Marcos Amorim, era militante sem-terra e atuava na Residência Multiprofissional em Saúde do Campo da UPE em parceria com a Fiocruz e o MST. Em seu território de atuação realizava grupos de atividade física com costureiras em assentamentos da reforma agrária. Marcos me contava as histórias das costureiras e seus familiares, os processos de adoecimento físico e psicológico os quais se desenvolviam naquelas comunidades que viviam no ritmo frenético da costura. Um desses territórios era o assentamento Veada Morta, localizado no distrito de Cachoeira Seca, zona rural de Caruaru.
Assim surgiu a ideia de produzir um documentário sobre o trabalho da costura em Cachoeira Seca como trabalho de conclusão de curso. Além do suporte de Marcos Amorim, Amanda Mansur, como orientadora e Camilla Barbosa, como amiga e produtora, contei com a ajuda de amigos queridos nesse processo. Havia montado um coletivo de Design que mais tarde viria a ser uma marca, a Las Lobas, com produção baseada no slow fashion (moda lenta), era o sonho de fazer moda de maneira totalmente oposta ao que era encontrado em Caruaru. Minha função, além da gestão coletiva, era a costura. Como boa parte das micro empresas de moda, que buscam nadar contra a corrente, Las Lobas não sobreviveu. Mas acredito que ter essa vivência no mercado da Moda foi fundamental para desenvolver ainda mais a empatia às costureiras.

Passei a frequentar o Veada Morta, por semanas fui com Marcos e suas colegas de turma para o assentamento. Passava algumas horas sentada ao pé das máquinas de costura de D. Maria, D. Luciene, Micaeli, Rosângela, Eduarda e Sivoneide, que abriram suas portas para mim, permitindo que eu conhecesse suas histórias de vida. Sempre comentava sobre vovó e a troca ia acontecendo.
Para mim a ética do documentário sempre foi uma questão importante. E eu sabia que para adentrar numa comunidade rural, dentro das casas dessas mulheres, era preciso chegar com respeito e empatia. Esse foi um dos motivos que nos levaram a montar uma equipe totalmente feminina. Queríamos que fosse uma história sobre mulheres contada por mulheres. Fizemos uma visita ao assentamento com toda a equipe, não só para que pensássemos as questões ligadas a técnica, mas também para que houvesse uma interação entre nós e as costureiras antes de chegarmos com todos os equipamentos de filmagem.

Naquela semana que estivemos no Veada Morta fomos acolhidas pela família de D. Luciene e Micaeli. O clima era de afeto e aprendizado. As crianças queriam saber como funcionavam os equipamentos, nós aprendíamos com elas como funcionava toda a cadeia de confecção e como se dividiam entre os cuidados da casa, das crianças, da costura e do roçado. A nossa interação como equipe também fluiu muito bem. No final das entrevistas, D. Luciene convidou-nos para um almoço especial na casa dela. Voltamos para casa com as imagens, sons e certezas que estávamos fazendo aquilo por um propósito. Acredito que Pega-se Facção tenha sido uma consequência da minha relação com a cidade, ancestralidade, empatia, afetos e da vontade de unir moda, design e cinema com o interesse de fazer algo por aquela cidade que me acolheu durante 6 anos de minha vida.
*Sobre Thaís Braga

Thaís Braga é pernambucana, feminista, neta de costureiras, tem 27 anos e é graduada em Design pela UFPE no campus interiorizado de Caruaru. Vive entre o design gráfico e o de moda, mas sua paixão é contar histórias através do audiovisual.
O curta "Pega-se Facção" é seu primeiro trabalho como documentarista.
Saiba mais sobre o filme:
https://www.spiarevista.com/post/filme-destaque-maio-2021-pega-se-fac%C3%A7%C3%A3o